Estudo da Fifa mostra descaso de anos do Brasil com o futebol feminino
A seleção brasileira de futebol feminino já chegou a ser vice-campeã mundial e a conquistar duas medalhas de prata em Olimpíadas nos tempos em que não existia sequer um Campeonato Brasileiro minimamente organizado por aqui. No entanto, na era de maior investimento, com duas divisões nacionais para o futebol feminino e uma equiparação da estrutura da CBF entre as seleções feminina e masculina, os resultados sofreram uma queda abrupta. Neste ano, o Brasil chegou até mesmo a ter dificuldades para passar da primeira fase da Copa do Mundo, conseguindo a classificação somente no terceiro lugar do grupo.
Diante de toda a visibilidade que se deu para o futebol feminino neste ano, apareceram também os críticos dizendo que a seleção feminina é feita de "amarelonas", que ela nunca vai chegar "a lugar nenhum", etc, etc. Houve até alguns colegas jornalistas questionando por que a cobertura estava sendo tão "branda" com as jogadoras, poupando-as das cobranças que normalmente acontecem quando uma seleção masculina é eliminada.
Pois um estudo da Fifa lançado neste mês traz as perfeitas respostas para esses questionamentos em números. Uma espécie de "diagnóstico do futebol feminino" em todas as confederações associadas a ela, mostrando quantas mulheres jogam futebol em cada país, quantas jogadoras estão registradas na base e no profissional, quantas categorias de seleção existem em cada um deles, quantas técnicas sao licenciadas, etc.
Os números do Brasil são pífios comparados aos países que dominam o cenário do futebol feminino mundial e também são baixos se comparados até mesmo a nações vizinhas bem menos promissoras da modalidade, como a Venezuela, o Peru e a Argentina.
Pegando alguns dados principais da pesquisa: o Brasil tem um total de 15 mil mulheres jogando futebol de maneira organizada (disputando campeonatos amadores ou profissionais). Os Estados Unidos, tetracampeões mundiais, têm 600 vezes mais – são 9,5 milhões de mulheres jogando bola por lá. Na Argentina, são mais de 27 mil, na Venezuela são mais de 24 mil; até mesmo países com população infinitamente menor, como Irlanda, Peru e Namíbia, têm mais mulheres jogando futebol do que o Brasil – isso em termos de futebol "organizado", disputando campeonatos em algum nível.
Quando olhamos para a base, a situação brasileira fica ainda mais sofrível. O Brasil tem apenas 475 jogadoras abaixo de 18 anos registradas nos clubes. Os EUA têm 1,5 milhão de atletas nessa idade registradas. Por lá, eles têm 8 categorias de base na seleção, começando pelo sub-14 – nos clubes, as categorias femininas começam com 4 ou 5 anos de idade. Por aqui, cumprimos as exigências da Fifa e mantemos uma seleção sub-17 e uma sub-20, sendo que ambas estão sem técnico desde setembro de 2018, há quase um ano.
Esses números refletem o descaso com que a CBF tratou o futebol feminino por anos, décadas. Algumas mudanças começaram a acontecer por aqui somente depois que a Fifa e a Conmebol vieram com exigências a serem cumpridas pelo desenvolvimento do futebol das mulheres – como a resolução que obriga os times masculinos a investirem no futebol feminino.
Em outros países, houve um plano de desenvolvimento para as mulheres, com investimentos acontecendo nas duas pontas: na base e na categoria principal. A principal estratégia sempre foi aumentar o número de meninas jogando e dar a elas a oportunidade de seguir nessa carreira. Foi assim que a França passou a ser um dos maiores expoentes do futebol feminino no mundo, campeã mundial no sub-17 e no sub-20, a quarta colocada no ranking atual. Modelo parecido seguido pela Holanda, que já foi campeã europeia, chegou à final da Copa neste ano e é o quinto país com mais mulheres jogando bola no mundo.
O plano de desenvolvimento do futebol feminino no Brasil é desconhecido. No comando da modalidade, estão homens que acumularam anos de experiência no futebol masculino – não há nenhuma ex-jogadora ou gestora do futebol feminino com poder de decisão sobre o futuro da modalidade na CBF. Marco Aurélio Cunha é o coordenador, Vadão é o técnico – nenhum dos dois que ocupam os principais postos do departamento de futebol feminino da confederação têm qualquer experiência prévia na área. Não é de se admirar que o desenvolvimento da modalidade esteja parado há tanto tempo.
Investimento da CBF e dos Clubes
Durante todos os anos em que a seleção feminina foi vencedora, fazendo frente às principais seleções do mundo mesmo sem ter qualquer estrutura para isso, nada foi feito pelo futebol feminino no Brasil. Falamos com algumas jogadoras sobre isso logo após a eliminação na Copa do Mundo e elas reconhecem que ficamos para trás por conta de todo o descaso com a modalidade.
"O apoio é óbvio que a gente perdeu muito tempo pra fazer isso. Aquela geração de 2004 e que levou até 2008 era um momento que a gente podia começar a lapidar outros talentos, para continuar a crescer o futebol feminino. Infelizmente a gente perdeu aquele momento de aproveitar aquela grande equipe para dar o apoio necessário, começar logo cedo. Um trabalho não vai fazer tanto efeito em meses. São coisas que acontecem em anos e anos. É um trabalho contínuo, não dá pra fazer nada a curto prazo", disse Marta.
O trabalho no Brasil começou a ser feito há pouco mais de cinco anos. O Brasileiro passou a existir em 2013, ganhou duas divisões somente em 2017, e só agora há um torneio nacional de base, o Brasileiro sub-18. Por aqui, o futebol feminino ainda é muito amador, com poucos clubes realmente investindo nele. Vimos a situação do Sport, que desmanchou a equipe feminina no início do ano sob o pretexto de "falta de verba" (o custo do time não chegava a mais de 400 mil por ano, parte ínfima do orçamento do clube) e montou uma às pressas que acumula goleadas em todos os jogos. Lá, as jogadoras não treinam regularmente, viajam em cima da hora para os jogos, não são tratadas como atletas. Muitos outros times vivem a mesma situação. Enquanto não houver investimento tanto da CBF, quanto dos clubes no futebol feminino, não dá para exigir resultados.
"É preciso dar estrutura para essas meninas nos clubes. Pra quem sabe a gente ser uma potência como a França é considerada hoje. Eu acho que machuca. Não é só a França, a Itália tem investido muito também. Não é só a CBF, os clubes precisam dar uma estrutura boa de trabalho, uma comissão boa que realmente entende. Aqui fora são pessoas que entendem. A Europa está crescendo muito e nós estamos ficando para trás", argumentou a meio-campista Thaísa após a eliminação do Brasil.
A evolução do futebol feminino depende da vontade de quem está no comando. Em São Paulo, em dois anos no cargo de coordenadora (agora diretora) do futebol feminino na Federação Paulista de Futebol, a ex-capitã da seleção Aline Pellegrino já conseguiu avanços importantíssimos, como a criação do Paulista sub-17 (primeiro torneio feminino de base do país), a criação de um torneio sub-14 e a organização de uma peneira histórica para meninas de 14 a 17 anos que reuniu quase 400 atletas e inseriu 65% delas nos principais clubes paulistas. Uma mulher que conhece a realidade da modalidade e que por isso é muito mais certeira no seu modo de atuação pelo desenvolvimento da modalidade. Enquanto isso, a CBF segue apostando em nomes ultrapassados do futebol masculino no comando técnico e em gestores sem experiência e conhecimento da modalidade.
Há 21 dias, o Brasil foi eliminado e ainda nenhuma palavra foi dita pela entidade sobre os rumos da seleção feminina após a Copa. Quanto maior o tempo perdido, maior a dificuldade para correr atrás do prejuízo.
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