Tetracampeãs: Por que os EUA são tão imbatíveis no futebol feminino?
Os Estados Unidos são campeões do mundo mais uma vez. Em oito edições da Copa do Mundo feminina desde 1991, as americanas levantaram o caneco quatro vezes – essa, porém, é a primeira vez que fazem isso consecutivamente. Uma hegemonia que já dura três décadas, soma quatro ouros olímpicos e quatro Copas e não parece que irá acabar tão cedo.
+'Essas americanas são diferentes mesmo. Parecem um time masculino jogando'
A trajetória delas até esta final passou longe de ser a mais simples. Se na fase de grupos, a seleção americana teve "tranquilidade" para passar por Tailândia (13 a 0), Chile (3 a 0 com as reservas) e Suécia (2 a 0), dali em diante vieram ameaças constantes: Espanha nas oitavas (2 a 1), França nas quartas (2 a 1) e Inglaterra na semi (2 a 1). Agora, diante das campeãs europeias da Holanda, os Estados Unidos impuseram seu ritmo de jogo e venceram por 2 a 0.
Mas o que explica um time que permanece por tanto tempo ganhando tudo, no topo, praticamente sem sofrer ameaças? Por que as americanas são tão imbatíveis no futebol feminino? A explicação não tem nada a ver com sorte, nem com a fragilidade dos adversários. Explicamos aqui como os Estados Unidos construíram essa hegemonia com muito trabalho entre as mulheres.
1- A maior base do mundo
Nos Estados Unidos, futebol é "coisa de menina". Enquanto os meninos vão para o basquete, o futebol americano, o beisebol, o esporte mais popular entre as meninas é justamente o futebol. É mais ou menos a mesma lógica que aplicamos no Brasil com os meninos, que aqui todos eles nascem com a bola no pé – só que lá isso acontece com as meninas.
Elas podem começar em casa ou na escola, mas desde muito pequenas já têm a oportunidade de jogar em clubes. Existem muitos que oferecem categorias de base para garotas a partir dos 7 anos. Isso faz com que elas se desenvolvam desde muito cedo e que tenham o futebol como uma possibilidade de futuro – lá, o esporte está sempre atrelado à educação e quem joga bola tem grandes chances de conseguir uma bolsa na universidade para seguir essa carreira.
"A beleza do nosso país é que temos muitas, muitas meninas jogando, acho que essa é a nossa grande vantagem. Acho que temos mais mulheres jogando no nosso país comparado com o resto do mundo somado. Mas é um país grande, então é um desafio fazer com que esse desenvolvimento seja igual em todos os lugares, sempre temos esse debate", disse às dibradoras Julie Foudy, ex-capitã dos Estados Unidos, bicampeã mundial (1991 e 1999) e bicampeã olímpica (1996 e 2004).
"Temos leis muito fortes que permitem que as meninas joguem, elas têm a oportunidade também de jogar na faculdade também. A nossa liga profissional não é a mais forte, mas elas têm a chance de jogar. Isso ajuda a conseguir se manter no topo".
Não é mentira quando Foudy diz que os Estados Unidos têm mais mulheres jogando do que a soma do resto do mundo. Um estudo divulgado na última semana pela Fifa mostrou que existem 9,5 milhões de meninas/mulheres jogando futebol (disputando campeonatos, etc) em território americano. Considerando que todos os países somados têm 13,3 milhões de jogadoras, os EUA representam 71% de todas as mulheres que jogam bola no mundo.
Somente entre as atletas menores de 18 anos registradas em clubes, são 1,5 milhão. Um número muito expressivo que garante a formação de atletas de alto nível para abastecer as seleções de base e a principal.
2- Mais investimento
Quando perguntada na coletiva de imprensa antes da final sobre o que seria necessário para manter o futebol feminino no topo após a Copa, a capitã americana Megan Rapinoe não pestanejou: "money, money, money, money".
Sem investimento, você nunca vai conseguir construir um negócio rentável – e também não vai conseguir um time campeão. O investimento da US Soccer, a confederação americana, ao longo das últimas décadas foi o que permitiu aos Estados Unidos se manter no topo por muito tempo. E isso é reconhecido até mesmo pelas atletas, que travam na Justiça uma batalha contra a entidade reivindicando igualdade nos pagamentos e nas condições de trabalho em relação à seleção masculina.
"Nossa Confederação é um exemplo quando se fala em financiamento da equipe. Obviamente eu sou a primeira a questioná-los e cutucá-los sobre isso, mas eles nos apoiaram demais. Comparando com todas as outras confederações do mundo, não acho que exista alguém próximo. Acho que essa é a grande razão pela qual conseguimos ser tão bem-sucedidas e dominantes por todo esse tempo", pontuou Rapinoe.
"Nós não costumamos elogiá-los, mas é definitivamente válido mencionar isso. Eles apoiam a equipe de uma forma muito forte e elevam o nível do jogo, não só em nosso país, mas em todo o mundo. Então eu acho que eles merecem uma quantidade enorme de crédito por isso e vamos continuar a empurrá-los para frente", completou.
3- Renovação
Os Estados Unidos nunca tiveram uma "Marta", no sentido de ter revelado uma jogadora absoluta, que tenha conquistado tantos prêmios individuais e encantado o mundo com sua forma diferente de jogar. Mas eles sempre tiveram grandes destaques. Em todas as gerações das seleções americanas, é possível identificar "algumas craques" que lideraram a equipe para as conquistas.
Na geração de 1991 e 1999, Mia Hamm, Julie Foudy, Brandi Chastain. Na geração de 2004 e 2008, elas já foram passando o bastão para Abby Wambach, Carli Lloyd, Tobin Heath e Hope Solo; em 2012 e 2015, surgiram vieram as líderes que tomariam conta dessa geração, Alex Morgan e Megan Rapinoe; e nessa Copa, já se vê outros nomes despontando, como Rose Lavelle e Lindsay Horan (24 e 25 anos). Ou seja, a renovação é constante. Sempre há novas craques e, principalmente, novas líderes surgindo para não só manter o nível do time dentro de campo, mas também para continuar a luta da equipe fora dele.
"Acho que isso é definitivamente uma característica do nosso time. Sempre fomos guerreiras em termos de cobrar a confederação para apoiar o futebol feminino. E quando começa assim, nós ensinamos as novas gerações, isso é o que importa. Nós sempre falamos para elas: é por isso que você vai lutar, para fazer o jogo melhorar para as próximas gerações. Nós somos muito conscientes na hora de fazer com que as gerações futuras saibam da importância disso também e que elas se importem com a luta", explicou Julie Foudy.
Esse discurso, inclusive, é muito visível em todas as atletas. É muito comum ouvir Morgan e Rapinoe falando sobre o papel que elas têm para "deixar o jogo melhor para o futuro". Uma consciência coletiva que é difícil de encontrar em outros times do mundo. É que alimenta o surgimento de novas craques dentro de campo, que também são líderes fora dele. As atletas de hoje sempre fazem questão de mencionar as que vieram antes delas – Rapinoe nomeou algumas das campeãs de 1999 na coletiva e também pediu a Carli Lloyd, que está em sua última Copa, para levantar a taça de campeã.
"Nós tentamos honrar a tradição que as gerações de 1991 e 1999 deixaram", disse Alex Morgan.
4- Reivindicações coletivas
Esse talvez seja o maior exemplo das conquistas americanas. Porque se elas conseguiram tantos títulos, isso só foi possível graças ao investimento que tiveram por parte da confederação. E elas não tiveram isso de mão beijada. Na primeira Copa do Mundo, em 1991, elas também viajaram com os uniformes que restavam da seleção masculina e não tinham tanto apoio da US Soccer. Mas para elas essas reivindicações sempre foram cruciais e coletivas, e isso ajudou muito o time a conseguir avançar.
"Em muitos países, questionar, cobrar as confederações significa ser cortada depois. Então é difícil quando você não tem muitas oportunidade para falar. Mas o que nós aprendemos muito cedo é que, quando você faz isso coletivamente, juntas, eles não podem cortar o time todo. Você vai ter que cortar 20 jogadoras, 40, e aí eles estão ferrados, porque não podem fazer isso", explicou Julie Foudy.
Foi essa união que levou as atletas da seleção americana a processar a US Soccer alegando desigualdade de gênero institucionalizada. Todas as 28 atletas entraram na Justiça reivindicando as mesmas condições de trabalho e os mesmos pagamentos que a confederação dá à seleção masculina – tudo isso em março, a três meses do início do Mundial. Nenhuma jogadora foi cortada, porque não seria possível uma punição a todas elas. Hoje, elas ainda precisam fazer seu papel no campo e também fora dele.
"Infelizmente ainda sobra para as jogadoras fazer isso (lutar por igualdade). Esperamos que chegue o dia em que as jogadoras não precisem levantar a voz nessa luta. Mas acho que é importante ter jogadoras que continuam lutando e é isso que temos visto hoje no mundo todo. Espero que chegue um momento em que não precisemos mais lutar."
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