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'Quero que meninas pretas olhem para mim e vejam que podem ser as próximas'

Renata Mendonça

04/12/2019 04h00

Foto: Reprodução SporTV

Ligar a TV e ver mulheres comentando futebol em rede nacional é raro, mas até acontece. Agora ligar a TV e ver uma mulher negra como comentarista na bancada era simplesmente impossível – até o último mês pelo menos. No dia 20 de novembro, simbolicamente a data em que se comemora a "Consciência Negra" no Brasil, Rafaelle Seraphim foi chamada pela primeira vez para integrar o time de comentaristas do Redação SporTV. Mas não parou na data comemorativa. Desde então, toda semana ela ocupa uma cadeira ali dando sua opinião sobre o que acontece no futebol aqui e pelo mundo.

É sempre muito difícil cravar uma mulher como "a primeira" que fez isso ou aquilo no esporte, porque faltam registros de tudo o que já foi realizado por elas na história. Nunca se deu muita importância. Mas não há dúvidas de que Rafaelle, aos 29 anos, já é uma pioneira – se não foi a primeira mulher negra comentarista de futebol, ainda é a única atualmente.

"Eu não tenho precisão se isso já aconteceu em algum momento na história. Já tentei buscar e não encontrei. Mas em TV, em rede nacional, não me lembro de nenhuma mulher negra como comentarista. Como repórter, apresentadora, tem. Mas dando opinião na bancada, não", afirmou a jornalista em entrevista às dibradoras.

Foto: Arquivo Pessoal

É exatamente por isso que Rafaelle Seraphim tenta ser a melhor referência possível para que as meninas negras que a assistem possam sonhar em um dia ocupar o mesmo lugar. Desde o primeiro dia em que foi chamada para comentar no Redação, ela recebeu muitas mensagens de mulheres e homens negros nas redes sociais falando da importância de se verem representados ali. Seu maior objetivo agora é não ser mais a única, e abrir portas para que outras comentaristas negras possam chegar.

"O primeiro dia que participei do Redação eu tinha noção do que isso poderia causar. Porque por mais que mulheres estivessem ocupando esse espaço, ainda não tinha mulher negra pra comentar na bancada, eu sabia que isso poderia ter impacto. Como mulher negra eu tenho uma responsabilidade muito grande. De tentar manter ali uma representatividade", disse.

"Se uma garota negra tiver esperança de que ela vai chegar lá porque ela me viu ali, se ela conseguir se reconhecer ali, já me deixa muito feliz. Quero que garotas pretas olhem pra mim e entendam que elas podem ser as próximas."

Paixão pelo futebol

Rafaelle cresceu em Cavalcante, subúrbio da zona Norte do Rio de Janeiro, e teve em casa uma das maiores referências para gostar de futebol. A mãe é torcedora fanática e frequentadora de arquibancada, a avó também. A família toda é apaixonada por bola, e assim ela cresceu jogando e torcendo (só não seguiu a paixão pelo mesmo clube da família).

"Eu não consigo me lembrar de um momento em que o futebol não esteve na minha vida. Eu sempre vivi muito nesse ambiente, jogo bola desde nova, no colégio e no time do bairro", contou.

Foto: Arquivo Pessoal

Quando chegou ao Ensino Médio, Rafaelle fez um curso profissionalizante em audiovisual e aos 18 anos passou a estagiar na Globosat. O trabalho não tinha a ver com esporte na época, mas ela já alimentava o sonho de ser jornalista. Na faculdade, teve a certeza do que queria: ser comentarista de futebol. Mas naquela época, ninguém entendia direito o que ela queria dizer com isso.

"Eu nunca tive referência para querer isso. As pessoas achavam que eu estava falando de ser repórter. E eu falava: não, não é isso, eu quero ser comentarista. As pessoas olhavam com cara de 'tadinha, não existe essa possibilidade'. Ninguém levava a sério. As pessoas falavam: 'ah, apresentadora?'. E eu: 'não, eu quero ser a pessoa da bancada, comentando o que acontece no futebol'. As pessoas pareciam não entender o que eu queria dizer. Mas eu acreditava muito que isso era possível. Eu falava: cara, as coisas podem mudar. Sempre acreditei muito", afirmou.

Primeiros comentários

Não foi fácil, nem rápido, mas aos poucos Rafaelle conseguiu trilhar o caminho para realizar o sonho de comentar futebol na TV. Primeiro, ela foi editora do próprio Redação SporTV de 2009 a 2016, mas na época só ficava atrás das câmeras. Aí em 2014 criou um blog onde escreveu sobre todos os jogos da Copa do Mundo e ali passou a reunir uma base boa de leitores. Em 2017, criou as redes sociais do "Dominando a Área", onde falava sobre futebol sem mostrar o rosto – o dia em que fez isso, os seguidores quase caíram para trás ao descobrirem que a autora da página era uma mulher.

 

"As pessoas sempre que respondiam no direct achavam que estavam falando com um homem. Aí o Thiago, meu marido, falou pra eu botar a cara, para as pessoas verem que a página era de uma mulher. No primeiro vídeo que eu fiz, as pessoas ficaram chocadas. 'CARACA, TU É MULHER! Pô, sou seu fã', recebi várias mensagens assim", conta.

Em 2018, foi convidada por Vanessa Riche, com quem havia trabalhado no SporTV, para participar do programa "Comenta Quem Sabe" da Fox Sports durante a Copa do Mundo. Na época, Rafaelle trabalhava como editora de outros canais da Globosat (nenhum relacionado a esporte), e os chefes a liberaram para fazer. Depois, vieram oportunidades para comentar jogos da seleção feminina e das seleções masculinas de base pela CBF TV. E aí algumas pessoas que trabalharam com ela no Redação voltaram a insistir para que os chefes a convidassem para o programa.

 

"Já tinham tentado me colocar no ar, mas era um momento muito diferente, ninguém tinha aberto essa porta (para mulheres) em nenhum lugar. Quando eu comecei a ir para a Fox, as pessoas falavam de mim no SporTV, mas ninguém conseguiu emplacar essa ideia. Aí depois dos trabalhos para a CBF TV esse ano, o pessoal da equipe do Redação falou com o (Marcelo) Barreto (apresentador) e ele gostou da ideia. Eles me chamaram pra mesa no dia da consciência negra, depois chamaram de novo e agora tenho ido toda semana".

Foto: Arquivo Pessoal

Houve também quem dissesse que Rafaelle "não é negra" e diminuísse o feito dela ocupando o lugar na bancada do SporTV. A jornalista, porém, nem se incomoda em responder esses comentários. "Eu sempre me reconheci como negra pelo histórico da minha família, mas muita gente não me vê como negra. Como se houvesse um único tipo de negro no mundo. Dentro do movimento negro, tem uma coisa que se chama colorismo, que vai te ajudando a entender de acordo com sua ancestralidade o lugar que você ocupa. Eu sei que eu não passo pela mesma coisa que mulheres de pele mais escura passam porque eu não tenho tantos traços africanos presentes em mim. Mas se houver uma mulher negra que se sinta representada me vendo ali, já vai valer pelos comentários negativos."

Ciente da representatividade que carrega, Rafaelle reforça a importância das mulheres seguirem juntas buscando o espaço que sempre mereceram no esporte. "A gente está fazendo um barulho que eles não têm mais como ignorar. Não é ter mulher por ter mulher, ou ter negro pra ter negro. É encontrar as pessoas competentes pra isso. A gente quer ocupar o espaço onde a gente tem competência. Tem muita mulher e tem muito negro que merece estar ali."

 

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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