Problema na base? Até os 14, brasileiras só têm um clube para jogar futebol
O incêndio trágico que tirou a vida de 10 garotos das categorias de base do Flamengo levantou algumas discussões sobre a estrutura que os clubes oferecem no Brasil para meninos que sonham em ser jogadores de futebol. Aproveitando o momento, e considerando o fato de que os times de Série A agora precisam cumprir a resolução da CBF e manter equipes profissionais e de base no feminino para disputarem o Campeonato Brasileiro no masculino, trazemos aqui a discussão para o campo das meninas: para onde vão as garotas que também cultivam o sonho de serem jogadoras de futebol?
Quando contamos a história da Natália, a primeira garota a passar em uma peneira de um clube de futebol masculino, muita gente questionou por que ela não ia jogar com as meninas em vez de atuar com os meninos. A resposta é: porque não há essa opção para uma garota de 9 anos. Infelizmente, sobram meninas querendo jogar bola, e faltam clubes femininos para acolhê-las.
Atualmente, só há um clube de futebol no Brasil que oferece base do início ao fim exclusivamente para meninas. Lembrando que clube tem uma estrutura e um objetivo diferente de escolinha. E mesmo as escolinhas de futebol só para meninas são muito raras, então para aquelas que querem levar isso ainda mais a sério e já começarem desde cedo treinamentos focados na formação de uma atleta de verdade, isso é praticamente uma missão impossível por aqui.
Aliás, era impossível até cerca de 10 anos atrás, quando surgiu o primeiro e único clube de base exclusivo para garotas. Ele se chama Centro Olímpico,um projeto em parceria com a prefeitura de São Paulo que passou a trabalhar com a base em 2010. O trabalho dá tão certo que sua equipe feminina sub-14 tem no histórico um título conquistado em um campeonato masculino muito tradicional da cidade chamado Copa Moleque Travesso.
O Centro Olímpico tem equipes femininas sub-11, sub-13, sub-15 e sub-17 (esta última virou uma parceria com o São Paulo, que agora assumirá a gestão do time). E por ser a única opção, literalmente, para as meninas até pelo menos os 14 anos de idade – depois disso, já há outros clubes que mantêm equipes sub-15 e sub-17 -, o clube da capital paulista acolhe meninas de todas as partes do Brasil. Como é o caso da própria Natália, que joga no Avaí, mas desde o ano passado viaja a São Paulo uma vez por mês para passar uma semana treinando com o Centro Olímpico no sub-11. É também o caso da jovem Ravena, de 14 anos, que passou na peneira do clube paulista em 2016 com 12 anos e se mudou junto com a mãe de Teresina para a capital paulista para poder viver seu sonho de jogar bola.
"A mãe veio para cá para a menina tentar realizar o sonho dela. Hoje ela já foi campeã sul-americana, campeã brasileira. Então é aquela coisa, quanto que vale um sonho? É uma família muito humilde, que abriu mão de tudo para seguir o sonho da menina", contou às dibradoras Douglas Matsumoto, técnico do sub-15 no Centro Olímpico.
A base começou a ser estruturada no Centro Olímpico em 2010, quando surgiu a categoria sub-15 por lá. Ao longo dos anos, eles foram percebendo o aumento da demanda para meninas mais novas e criaram o sub-13 em 2012. O sub-11 veio em 2015, e hoje em dia qualquer garota de 9 anos para cima pode fazer a peneira (ela acontece todo mês) para uma das categorias do Centro Olímpico. São cerca de 25 a 30 jogadoras em cada elenco, o que obviamente não dá conta da demanda de um país inteiro que, cada vez mais, tem meninas sedentas por uma oportunidade para jogar bola.
"As meninas querem jogar bola cada vez mais cedo. E jogar de uma maneira sem preconceito. Às vezes a gente vai em escolinha com menino, aí tem uma menina habilidosa que dá um drible num menino, aí já vem o pai e diz: ah, mas você vai tomar drible de menina? E ela ouve isso o tempo todo. Aqui não, aqui ela está num ambiente confortável para ela, traz uma sensação de pertencimento", pontuou o treinador.
Depois da dificuldade de encontrar um clube para jogar vem a dificuldade de achar um campeonato para disputar. Os torneios dessa idade, de 11 a 14 anos, são sempre voltados para meninos e não há competições exclusivas para meninas. Sendo assim, é sempre preciso um pouco de "jeitinho" para convencer todas as equipes sobre a importância delas participarem.
"Na primeira competição que a gente ganhou, a Copa Moleque Travesso, a inclusão nossa no campeonato foi debatida no congresso técnico, porque não podia menina. A partir do ano seguinte, eles começaram a incluir a participação das meninas no regulamento. Foi legal porque os outros times começaram a perder essa resistência também e algumas meninas começaram a participar dos times masculinos também, coisa que antes não tinha.
"O legal é que quando os meninos começam a bater de frente e ver que as meninas conseguem jogar de igual para igual, isso já vai quebrando a barreira. É uma sementinha que a gente plantou no coração desses meninos, que vai começar a disseminar. O próximo time feminino que for disputar já vai ter menos dificuldade e assim por diante", reforçou Douglas Matsumoto.
Cenário da base
Até pouco tempo atrás, não existia divisão por idade nos clubes de futebol feminino. Conforme descreveram as ex-jogadoras, o clube tinha uma categoria só: a feminina.
"Não existia sub nada. Era só uma equipe feminina, a profissional. Eu comecei com 13 anos jogando com o profissional da Portuguesa", contou a ex-meio-campista Daniela Alves, que agora é técnica do recém-montado time sub-17 do Corinthians. Nas peneiras, ela viu mais de 800 meninas – e até alguns meninos – se inscreverem com o sonho de jogar lá. E viu também algumas desistirem, porque o clube não vai oferecer alojamento nem escola/faculdade para as atletas.
"Infelizmente, as pessoas não olham os atletas como seres humanos, e isso precisa ser levado em consideração. Aqui eu não olho aquela menina só como atleta, eu priorizo a pessoa, porque ela estando bem, vai poder executar seu melhor futebol. O Corinthians não vai alojar essas meninas ainda, porque não é só alugar uma casa e colocá-las dentro, isso exige muita coisa, muitas responsabilidades. O Corinthians, a minha comissão, tem essa consciência. Estamos indo aos poucos para mais fazer da forma correta", disse Dani.
Um dos motivos pelos quais a base feminina demorou tanto a se desenvolver é também porque não havia campeonato feminino nessas categorias para disputar. O primeiro em nível estadual foi o Paulista Sub-17 organizado pela Federação Paulista pela primeira vez há dois anos com cerca de 2 a 3 meses de duração. Em nível nacional, existiram algumas competições pontuais com duração de duas semanas no fim da década de 1990, mas só agora em 2019 haverá pela primeira vez um Brasileiro Sub-18, com 24 equipes e duração maior.
"As jogadoras precisam passar por um processo de desenvolvimento motor, de maturação, e quando você não tem categoria de base e joga essas garotas direto no profissional, às vezes você perde meninas ali, porque elas não conseguem atingir o pico de perfomance do alto rendimento. Você não deu tempo pra essa maturação. Quando você tem a competição separada para aquela idade, você permite que elas tenham tempo pra chegar lá no profissional preparadas", explicou Aline Pellegrino, coordenadora de futebol feminino da FPF e uma das idealizadoras do Paulista Sub-17 e também do Festival Sub-15 organizado pela entidade.
Com a exigência de equipes de base no licenciamento da CBF, os clubes que vêm do masculino também precisam investir em categorias de formação no futebol feminino e isso deve ajudar a desenvolver mais a modalidade desde cedo.
"O sub-18 é a primeira competição estruturada cobrindo todo o território nacional e com um calendário já mais longo, com o objetivo de além de fomentar as grandes equipes do futebol feminino, promover o surgimento de mais atletas, ela também fomenta duas categorias, o sub-17 e o sub-20", disse Romeu Castro, Supervisor de Futebol Feminino do departamento de competições da CBF.
Com mais esse passo, o futebol feminino agora terá mais clubes com equipes sub-17 e futuramente isso deve fomentar também o crescimento das categorias sub-15, sub-13 e quem sabe até sub-11.
"A gente tem que estar querendo as nossas competições, só femininas. É um processo. Hoje nenhum clube consegue oferecer alojamento para a base, mas vai ter mais pra frente. É tudo um processo. Vamos perder algumas meninas nisso, vai ter muita menina que vai desistir porque não vai conseguir se bancar, mas isso faz parte do processo de desenvolvimento. A gente vai perdendo gente, só que a ideia é que a gente perca cada vez menos", concluiu Aline Pellegrino.
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