Técnico do Corinthians: 'Futebol feminino me permitiu completar trabalhos'
O ano é 2021, mas a verdade é que desde março de 2020 parece que vivemos dias e meses intermináveis, de uma mesma saga em busca da sobrevivência. A pandemia da COVID-19 abalou estruturas, mexeu com o psicológico e exigiu do ser humano ferramentas de reinvenção, tanto práticas como de cunho emocional.
Foi preciso fazer do limão uma limonada, e um ótimo exemplo disso é o Corinthians Feminino. Nas mãos de Arthur Elias pela quinta temporada seguida, a equipe do Parque São Jorge foi campeã do Brasileiro Feminino e do Paulista da modalidade, únicas competições que o clube participou em um ano tão atípico (a Libertadores foi adiada).
"Tanta coisa ruim acontecendo, ter esses momentos de alegria com o clube, de títulos, vitórias, apresentando uma evolução, a emoção é diferente pela dificuldade que o mundo está passando e com o futebol feminino não foi diferente", disse o treinador em um bate-papo de pouco mais de uma hora – dois dias após a virada de ano – sobre Corinthians, renovação, carreira, pandemia e outras coisas, incluindo Seleção Brasileira.
Início
Quem vê Arthur Elias na beira do campo sabe que o treinador é pura energia. Quinto filho de um total de seis (cinco homens e uma mulher), o comandante carrega consigo princípios herdados da família. "Sempre vivi minha vida com intensidade".
Ter este suporte em casa foi fundamental quando o treinador decidiu pelo futebol. "Eles sempre me apoiaram, desde que joguei nas categorias de base, e o que eu aprendi com eles é que a partir do momento que a gente escolhe o que quer e gosta, fazer com intensidade, entrega e disciplina é importante. Liderar pessoas sempre fez parte da minha vida, desde pequeno, adolescente, é uma característica que carrego", completou.
Arthur se relaciona com o futebol desde moleque, quando jogou em categorias de base e ainda carregava o sonho de ser um atleta. "Parei já pensando em ser treinador", completou.
Aos 20 anos, o primeiro "grande desafio", aos 25, o futebol feminino. "Eu tinha feito categorias de base masculina e isso foi importante para treinar a USP. Eu só aceitei o trabalho podendo fazer um projeto interdisciplinar. Sabia que ali era só um laboratório, eu queria conhecer mais a realidade", disse Arthur.
"No mesmo ano eu já estava enfrentando o Santos, o Saad numa final. Muito rapidamente eu já conhecia as principais equipes da modalidade, o que me fez olhar como plano de carreira, onde poderia me destacar dentro de um cenário carente, desafiador. O interesse era evoluir como profissional, então precisei trabalhar muito para realizar a montagem de um time, toda estrutura necessária", completou.
'As coisas não vieram de graça, foram conquistadas'
Uma das coisas que Arthur Elias gosta de destacar sobre sua carreira é a importância de se cercar de bons profissionais. Depois da experiência com equipes universitárias, é no Centro Olímpico, ao lado desses bons profissionais, que o treinador chega pela primeira vez à glória máxima da modalidade nacional.
"O futebol feminino me trouxe essa possibilidade de terminar todos os anos, de completar meus trabalhos e nunca ser demitido, além de conseguir sempre ter pessoas extremamente competentes junto, mesmo sem ganhar dinheiro no começo. Quando vem o Centro Olímpico em 2010 e 2011 eu troco a minha comissão inteira e chego com aquele olhar de que dali você pode tirar mais, ter uma melhor estrutura, condições de realização", explicou o técnico.
O projeto no Centro Olímpico rendeu ao comandante seu primeiro Brasileirão Feminino, em 2013. De lá para cá o Corinthians entra na sua vida e soma à conquista mais dois Campeonatos Brasileiros (2018 e 2020), uma Copa do Brasil (2016), duas Libertadores (2017 e 2019) e o bi Paulista (2019 e 2020). Além disso, os expressivos números de sua comissão técnica que em 2021 vão para seu oitavo ano de trabalho: 204 jogos, 159 vitórias, 30 empates, 15 derrotas, 605 gols marcados e 121 gols sofridos.
"As coisas não foram entregues de graça, inclusive no Corinthians. Você precisa saber o momento de trazer as pessoas certas, alternativas para aquele lugar. É fácil pedir, difícil é criar alternativas", falou Arthur.
'Nossas atletas competem para serem cada vez melhores entre elas'
O Corinthians virou o time a ser batido por todos os títulos que conquistou, e o Brasileiro chegou em 2020 com mais competitividade pelos times de camisa que tinham subido da segunda divisão: São Paulo, Palmeiras, Grêmio e Cruzeiro. O clube sabia dos desafios que teria, e correu atrás para "surpreender".
"Nós não nos reinventamos. Evoluímos e trouxemos elementos novos que foram deixando aquilo que a gente já tinha de estrutura de jogo, ideia de jogo, mais complexo, imprevisível para esses adversários e desafiador para as meninas, que toparam. É importante enxergar coisas novas, que você é capaz de fazer diferente, fazer mais, de responder a situações que na verdade estamos competindo com a gente mesmo para seguir vencendo", contou Arthur, que completou explicando o que de fato mudou no Corinthians de 2020.
"A gente trouxe coisas diferentes, como a goleira participando ativamente do jogo. Fez com que eu colocasse uma jogadora a mais entre as linhas do adversário para chegarmos com volume maior, chegar ao gol criando chances. Mudamos esquema tático aprimorando ideias, conceitos, o sistema, a distribuição delas em campo foi algo novo. Ter uma linha de quatro segura, potencializaro meio de campo e o ataque respeitando melhor a característica do elenco, com duas centrais e duas meias abertas", disse o técnico.
O resultado dentro de campo, que culminou com Brasileiro e Paulista de 2020, tem muito do que é feito nos bastidores de um clube que investe na modalidade. "Reflete para uma evolução de todos os profissionais. Quanto mais tenho uma equipe multidisciplinar, mais as atletas precisam aproveitar isso. O feminino sempre foi muito sofrido, nos últimos anos elas têm respondido de forma fantástica e aproveitando essas condições que são melhores, mas eu entendo que tem que ainda ser bem melhor", afirmou Arthur.
"Nós podemos crescer muito mais ainda. Busco isso hoje dentro do Corinthians, dentro da modalidade, sei o quanto isso é importante para um esporte que tem sido cada vez mais competitivo. É uma questão de escolha, o investimento em estrutura, em profissionais, para mim é muito bom", completou.
Melhor jogo
Em 20 de dezembro de 2020 o Corinthians fez, na visão de Arthur Elias, sua melhor exibição em quatro anos de projeto, e foi justamente numa final de campeonato. Após vencer, de virada, a ida por 3 a 1, o Timão goleou a Ferroviária, em Araraquara, por 5 a 0 e conquistou o bi do Paulistão Feminino.
O desempenho da equipe, principalmente no primeiro tempo, surpreendeu até o próprio treinador. "Foi um jogo marcante… 4 a 0 no primeiro tempo, um domínio completo", declarou o comandante, que continuou:
"Vínhamos de nove mata-matas seguidos em um mês. Tinha o estresse físico, mental e encontramos aquele equilíbro que eu sempre falo de você conseguir treinar e jogar, por isso rodamos tanto o elenco, para que elas treinem com qualidade. O time exerceu muito bem nosso trabalho, ideias, encaixou muito bem a marcação pressão com bloco médio, muito consistente na linha de baixo defensiva para ganhar as bolas e seguir na construção. Agredimos muito o gol, com muita dinâmica do meio. O meu meio fez o melhor jogo porque a gente tinha a Andressa como primeira volante, a Diany e a Zanotti como meias, tivemos uma rotação nesse triângulo muito grande o jogo todo. O time foi imprevisível, intenso, eficiente, tudo o que um treinador gosta", finalizou.
O exemplo para o filho
Apelidado de "Rei" pela torcida corintiana, Arthur batalha para deixar um bom legado não só à equipe feminina, mas também a seu filho Aluísio, de 3 anos. Rodeado de mulheres por conta do trabalho, o treinador entende a responsabilidade de criar um filho homem em um mundo cruelmente machista.
"Com certeza me ajuda (o trabalho). A questão da mulher, do ambiente que eu vivo, o que isso representa, a luta de vocês… com certeza ele já cresce com uma outra visão. Na visão dele o futebol é mais feminino do que masculino, ele entende que as mulheres é quem jogam, é natural para ele", afirmou o comandante.
"A mãe do Aluísio é antropóloga, o tanto que ela contribui para ele, sempre contribuiu para mim para entender mais afundo. O que eu realmente fico triste, mas é algo difícil de fazer na prática, é que eu gostaria de estar mais com ele, participar mais, dividir, mas o futebol me exige muito e eu tenho tentado sim o meu máximo poder trazer a figura do pai nessa divisão de responsabilidades que muitas vezes os pais deixam as tarefas de casa para as mães, e isso não está certo, eu tento me esforçar muito para que ele entenda isso", completou.
Carregando o nome do irmão mais velho do papai, falecido em um acidente de carro, o pequeno Aluísio volta e meia aparece nos treinos do Corinthians. "Ele é nota mil e tem falado assim: 'As meninas do Corinthians estão com saudade de mim, papai?'. Ele joga bola com a vizinha da idade dele. Isso tudo vai ser mais natural, espero que ele possa ser uma pessoa melhor do que eu, todos os pais têm esse objetivo", declarou Arthur.
'Vão querer cada vez mais nos vencer'
Uma das particularidades do futebol feminino é não trabalhar com contratos longos – nem para atletas, nem comissão técnica. Portanto, todo fim de temporada é preciso sentar e avaliar quem fica, quem sai e quem chega.
Para 2021, o Corinthians renovou com 22 jogadoras das 28 que estiveram na temporada passada, contratou as atacantes Bianca Gomes, Miriã e Jheniffer e encerrou vínculo com Lelê, Taty Amaro, Mimi, Maiara, Pâmela e Suellen.
"Está tudo dentro do que a gente gostaria de fazer. O que a gente quer é manter o Corinthians forte, vemos que dá para tirar mais dessas atletas, que a fome é grande. Vamos seguir construindo com essa mentalidade de desafiar, encarar. Vejo essa consciência e desejo nessas atletas. É um ano especial de duas Libertadores, vamos defender todos os títulos que temos e quem sabe ter a oportunidade de buscar um confronto com uma equipe europeia, algo que nunca teve, que não é comum", afirmou o comandante.
O clube ainda deve anunciar a chegada de uma goleira. Aliás, a perda de Lelê foi bastante sentida pela torcida. A arqueira acertou com o Benfica de Portugal e deixa o clube do Parque São Jorge após completar 100 jogos e ganhar sete títulos. "É a melhor goleira da história do Corinthians, com certeza. Esse ano de 2020 foi muito importante e uma das evoluções foi o posicionamento da nossa goleira no jogo, mas faz parte do processo e precisamos respeitar. Confio muito na Paty e na Tainá (goleiras reservas)", apontou Arthur.
Futuro e seleção brasileira
Conquista após conquista, as redes sociais esbravejam por Arthur Elias no comando de algum time masculino ou à frente da Seleção Brasileira Feminina. Sobre o primeiro, o treinador revela já ter recebido convites, mas acredita não ser o momento para tal mudança.
"O que eu penso é um passo de cada vez, saber que aquele passo para mim vai significar um avanço, que terei condições melhores de trabalho, oportunidade de crescer profissional. Tenho sido muito coerente com o que eu decido", afirmou Arthur.
"Eu acho que eu tenho ainda a acrescentar para o futebol feminino. Sei aonde eu cheguei, a responsabilidade que tenho de conduzir uma equipe tão vitoriosa, com cada vez mais repercussão, essa merecida valorização. Estar no Corinthians me proporcionou um crescimento grande. Sou grato ao clube, aos profissionais que estão comigo. Um dia vou sair, vai acontecer naturalmente", completou.
Tratando de Seleção Brasileira Feminina, o treinador prefere não se colocar mais sob essa pressão. "Eu sempre tive o sonho e confesso que teve alguns momentos que imaginei estar mais perto dessa oportunidade. Mas com a experiência vamos vendo que é uma decisão que depende muito menos de mim, então o que eu penso é que se acontecer um dia vai ser muito prazeroso, de muito orgulho, mas não trabalho hoje planejando e nem contando com essa oportunidade", apontou Arthur.
O primeiro compromisso do Corinthians na temporada é a Libertadores da América 2020, adiada para acontecer entre os dias 5 e 21 de março, na Argentina.
*Reportagem de Mariana Pereira
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