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Ele queria um menino para seguir seus passos, mas veio uma campeã mundial

Roberta Nina

09/08/2020 04h00

Bia Ferreira e o pai, Sergipe (Foto: Acervo pessoal)

"Eu fui uma máquina pra fazer filha mulher", declarou Sergipe, ex-atleta e treinador de boxe que foi tricampeão baiano e duas vezes campeão brasileiro profissional, uma no peso galo, em 1999, e outra no peso super galo, em 2002.

Esse campeão é pai de três garotas e a mais velha delas é Beatriz Ferreira, atual campeã Pan-Americana e Mundial de boxe. "Eu era doido pra ter filho homem pra seguir minha carreira. Sempre tive essa vontade, mas aí já tomei 2×0, nasceu Bia e depois nasceu Samira e aí eu pensei: pô, com a situação que tá, não dá pra eu ficar tentando. Mas graças a Deus nasceu essa menina que é a Bia, que é pior do que homem", brincou Sergipe que também é pai de Maria Antonia.

Bia tem 27 anos e desde muito pequena acompanha o pai em treinos e lutas. Ele foi a maior referência que a garota teve dentro do ringue e, com quatro anos de idade, ela já seguia, literalmente, o mesmo caminho de Sergipe.

Bia Ferreira acompanhando o pai em suas lutas desde pequena (Foto: Acervo pessoal)

"Me lembro como hoje, eu estava lutando direto (nos campeonatos) Boxe Brasil, Verão Vivo, e chamava a atenção toda do bairro. Eu sempre me destacava nas competições, os meninos da rua assistiam e quando eu tirava o carro da garagem pra ir treinar, Bia já ia correndo pra 'bater saco', pegar uns pesinhos. Ela descia uma ladeira e ia pra academia. Eu falava 'vai pra casa, menina' e ela não ia. Ela se olhava no espelho, fazia a guarda toda torta e ficava pra lá e pra cá imitando os golpes. Ela só ia embora quando eu acabava o treino", relembrou.

O início do pai 

A trajetória de Sergipe na modalidade começa de maneira despretensiosa em Salvador. Foi observando um vizinho que treinava boxe (mas não competia) que Sergipe começou a pegar gosto pela luta. "A gente treinava socando saco de açúcar e o Silva (vizinho) cortava a boca da calça jeans, colocava espuma dentro e costurava. Essa era nossa luva."

Foi participando de uma seletiva na capital baiana que Sergipe foi descoberto. Ele "derrubou" um, dois, três e foi convidado a participar de um campeonato para iniciantes. Dali em diante, o boxe entrou pra valer em sua vida, mas a realidade que ele viveu foi bem diferente do que Bia vive hoje em dia.

"Eu falo pra minha filha, ela viu o meu sofrimento quando eu lutava, não tinha nem tênis pra correr e hoje ela tem tudo. Não pode reclamar de barriga cheia, não."

Bia treinando com o pai, Sergipe (Acervo pessoal)

Sergipe tem 51 anos anos e encerrou a carreira aos 38 anos. Subiu 45 vezes no ringue, vencendo 42 lutas e perdendo apenas três. Treinou na mesma academia que Popó (campeão mundial de boxe em 99) e acabou fazendo parte da equipe do campeão baiano e se tornou sparring dele. Foi somente nessa época que começou a ganhar dinheiro trabalhando com boxe. E Bia, claro, sempre ali perto, acompanhando o trabalho do pai.

Vendo que a garota tinha talento e se interessava pelo boxe, o pai pensou: "vou investir nessa menina e treinar ela". Dito e feito. "Comecei a levar ela pra academia onde eu treinava para ela ficar vendo os meninos e o Popó. E ficar lá a empolgava mais. E eu falava 'olha como Bia tá ficando', e ela ia batendo na manopla e todo mundo ficava admirado. E nessa época, a Adriana (Araújo, medalhista de bronze nos Jogos Olímpicos de Londres-2012) e a Erika (bicampeã brasileira e Pan-Americana de boxe) também treinavam lá e ela ficava vendo a luta delas também."

Juntos pelo boxe

Há 15 anos, Sergipe recebeu uma proposta de emprego em Juiz de Fora e se mudou para lá. Ele e a mãe de Bia se separaram e a filha mais velha quis morar com o pai e se dedicar ao que mais amava. E foi ao lado do pai-atleta-treinador que Bia começou a se desenvolver no esporte.

E juntos, eles foram evoluindo e enfrentando muitos desafios, como a falta de campeonatos para que Bia pudesse lutar e uma suspensão inesperada que por dois anos deixou a lutadora longe dos ringues. Bia acabou praticando muay thai em uma academia e chegou a fazer uma luta nessa categoria, mas a Associação Internacional de Boxe Amador (AIBA) proibia que uma atleta lutasse em duas modalidades diferentes.

Sergipe treinando Bia em 2014 (Foto: Acervo pessoal)

"Bia tem muito tempo de treino, mas não tem de competição. Bia começou a lutar quando foi pra seleção. Comecei a arranjar umas lutinhas pra ela aqui, mas ninguém queria lutar com ela. Foi aí que ela começou a participar de campeonatos de muay thai porque não tinha evento de boxe e a descobriram", contou Sergipe.

A suspensão em 2014 foi um baque, mas o pai não deixou a filha desanimar. Mesmo sem competir oficialmente, o pai seguiu treinando a filha e, depois de passado o tempo de punição, Bia foi convidada pela Confederação Brasileira de Boxe (CBBoxe) para ajudar nos treinamentos de Adriana Araújo durante a Rio-2016 . Na sequência, ela participou do projeto de Vivência Olímpica e passou a fazer parte dos treinamentos da seleção brasileira.

Bia Ferreira, campeã mundial de boxe (Foto: COB)

De 2016 pra cá, Bia só evoluiu. Em 26 torneios disputados, ela conseguiu 25 pódios. Suas conquistas mais recentes são: Campeã sul-americana em Cochabamba (2018), Campeã Pan-americana em Lima (2019) e campeã Mundial em Ulan-Ude na Rússia, também em 2019. O Brasil não ganhava uma medalha  em Mundial desde 2010, quando Roseli Feitosa (81kg) havia vencido.

Novos vôos de Bia Ferreira

Depois de incentivar e lapidar o talento da filha, hoje Sergipe acompanha de longe o crescimento de Bia, que agora tem toda uma equipe que a acompanha e prepara sua rotina de treinos na seleção brasileira.

"Bia tem um boxe fora do normal. Não é porque é minha filha ou porque treinou comigo ou porque eu que fiz, mas Bia sempre foi talento. Agora ela está na seleção, com estrutura e com tudo e ela nunca tinha tido. Essa experiência de ter todo esse suporte a desenvolveu muito. Ela começou a competir, viajar o mundo inteiro e pronto", declarou Sergipe.

(Foto: Divulgação)

O pai se orgulha demais das conquistas da filha, mas é claro que sente falta de estar por perto e sonha em conseguir ir para Tóquio e presenciar a conquista mais importante da filha. "Quando estou (nos campeonatos), a Bia fica mais guerreira ainda. Ela fica mais segura. Não é que ela não tenha confiança nos treinadores, eles são excelentes, caras sinistros mesmo. Mas é aquilo, é o pai dela que está ali do lado. Ela fica mais forte. Eu percebo e ela também fala isso. Vou fazer de tudo pra ir pra Tóquio, é meu sonho. Não é  brincadeira, não. Ir pros Jogos Olímpicos pra ver minha filha lutar é outro nível."

Sergipe afirma que a filha tem sangue no olho e que se percebe em muitos trejeitos de Bia quando a vê lutando. "Quando entra no ringue ela se transforma. Muitas pessoas acham que somos muito parecidos e eu também. Quem vê a Bia lutando, fala que sou eu. Bia é uma atleta que tem mão, que pega, briga bem, uma atleta completa. E tem muita disposição como eu tinha, com garra, determinação e vontade de vencer. Ela ainda vai crescer muito mais!"

(Foto: Divulgação)

Bia está treinando com a seleção brasileira em Portugal, visando os Jogos Olímpicos. Mas antes de sonhar com Tóquio, ela precisa garantir a vaga em um pré-olímpico que ainda está sem data confirmada para acontecer. "E esse pré-olímpico vai embalar e fazer ela chegar bem pra Olimpíada. A gente está focado no que está faltando: a medalha olímpica. Essa vai ser a mãe de todas as medalhas que Bia tem", declarou o pai otimista.

Para fechar o papo, a gente pergunta para Sergipe se aquele menino que ele sonhava em ter como filho fez alguma falta. Ele responde, na lata: "Fez falta, não. Tenho arrependimento nenhum. Deus sabe o que faz, então nasceu uma menina baiana arretada, como o pessoal diz. Não precisou vir menino, não."

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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