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Não custa lembrar: no Flamengo ou no Benfica, será feita a vontade de Jesus

Renata Mendonça

15/07/2020 11h53

Foto: AFP

Na última terça-feira, um boato fez surgir a quarta tentação de Jesus no deserto (do Rio de Janeiro, desta vez). Poderia ser cômico e até bíblico, se não fosse o tão óbvio comportamento machista típico do futebol. Segundo a teoria conspirada (e muito compartilhada) nas redes sociais, Jesus estaria calmo e tranquilo diante da "tormenta" de uma proposta do Benfica, quando veio ela para derrubá-lo: a mulher responsável por dois pecados simultâneos do treinador: "trair" a esposa e a "nação rubro-negra".

Na Bíblia, Maria Madalena foi perdoada por Jesus, mas na sociedade sempre a trazem de volta para absolver um homem e colocar nela a culpa pelos pecados por ele cometidos. Chega a ser engraçado que um dos vídeos que trouxe a "denúncia" envolvendo o treinador do Flamengo trazia esse título: "Jesus e nossa Maria Madalena Carioca". Jorge Jesus poderia escolher ir para o Benfica pela proposta financeira milionária, pelo atrativo de voltar a disputar, quem sabe, uma Champions League (se o clube português confirmar a classificação), pela vontade de voltar ao seu país de origem. Mas na cabeça dessas pessoas, só um motivo o faria deixar o Flamengo: mulher.

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No caso, inventaram um caso extraconjugal para culpar duas mulheres ao mesmo tempo – a amante pela traição e a esposa pela decisão de voltar a Portugal. Em toda essa trama criada, não se considerou nem por um segundo a hipótese de que Jesus, pasmem!, tem vontade própria. E a decisão de ficar ou sair será dele e é de responsabilidade dele, e não de qualquer mulher que queiram colocar nessa história. É a lição do livre arbítrio, que também curiosamente nos foi dada pela Bíblia. E como um homem de 65 anos, Jorge Jesus é capaz de exercê-lo. Pode parecer muito surpreendente para alguns, mas homens tomam suas próprias decisões – não dependem de mulheres para isso – e são responsáveis por elas.

 

Diante de mais essa invenção para deixar uma mulher de bode expiatório para uma decisão que sequer foi tomada ainda, obviamente que foi ela quem sofreu as consequências. A advogada do treinador  recebeu ataques nas redes sociais de uma parcela de torcedores "revoltados" com a possível saída de Jorge Jesus. Ela, inclusive, veio a público se manifestar sobre as agressões virtuais.

"Nas últimas 24h, eu tenho sido covardemente agredida e caluniada nas redes sociais. Por um momento, pensei em bloquear meu instagram, encerrar minhas contas nas redes sociais. Mas eu pensei em quantas mulheres são violentadas diariamente, não só fisicamente, mas moralmente também. Eu decidi que minhas redes ficarão públicas, como sempre foram, porque eu quero que nossa sociedade perceba o quanto a gente ainda é machista. O quanto uma mulher como eu, que trabalha, que é independente e quer ter seu lugar no mundo é subjugada. Eu não vou me acovardar com essas pesssoas que têm me agredido têm feito", afirmou a advogada no vídeo.

Não é a primeira vez que, diante da possibilidade da saída de alguém importante para um clube de futebol, cria-se boatos sobre mulheres para justificar a decisão dele. No ano passado, quando surgiu a notícia de que o volante Cuellar poderia deixar o Flamengo, apareceram também as histórias de que uma amante seria o motivo para a saída. Ele negou, a suposta amante também, e o jogador tomou a decisão de sair de qualquer jeito. Um boato similar surgiu também recentemente no Vasco, com o volante Guarín, que pode sair do time cruzmaltino. Nas redes sociais, há quem já tenha o motivo pra isso: uma suposta traição à mulher, que acabou em separação do casal e numa crise conjugal que poderia fazer o jogador deixar o clube.

Esses são só alguns casos recentes. Há muitos outros no passado, como o do alemão Lothar Matthaus, que chegou ao Athlético-PR em janeiro de 2006 e foi embora em março do mesmo ano "por causa da esposa", conforme diziam as conversas de bastidores. Uns diziam que era traição, outros diziam que ela "não teria se adaptado" ao Brasil e seria a "culpada" por ele não ter ficado. Voltando mais ainda no tempo, podemos citar a história de Garrincha e Elza Soares, em que a cantora foi perseguida como a "culpada" por estragar o casamento do então jogador do Botafogo.

É preciso lembrar que jogador ou técnico de futebol tem vontade própria. Então mesmo quando realmente acontece um caso extraconjugal que gera crise no casamento e pode influenciar numa saída dele de um clube ou de outro, as decisões são tomadas por ele. É o jogador que decide trair, é o jogador que, eventualmente, decide deixar um time ou um país por isso ou por qualquer outro motivo. Todos eles são maiores de idade, responsáveis pelos seus atos. Já passou da hora de pararem de buscar mulheres para justificar as atitudes dos homens.

Na lógica machista e paternalista do esporte, muitas vezes a gente trata os homens do futebol como "meninos", e a responsabilidade por qualquer coisa que eles fazem recai sobre uma mulher. Jogou mal por causa dela, jogou bem por causa dela, deixou um clube porque ela pediu, traiu porque ela se insinuou, agrediu porque ela provocou.

Então vale lembrar aqui algo que pode assustar muita gente: no caso da disputa Flamengo x Benfica pelo mesmo técnico, será feita a vontade de (Jorge) Jesus. A decisão de ficar ou sair é tão somente dele, e o papel do dirigente, do torcedor e do corneteiro de plantão é respeitar – tanto a escolha do treinador, quanto as mulheres.

 

 

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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