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‘Meu sonho é ver mais mulheres aqui’, diz única engenheira da Stock Car

Roberta Nina

17/04/2020 04h00

Rachel é a única mulher engenheira entre as 12 equipes da Stock Car (Foto: Acervo Pessoal)

Rachel Loh cresceu brincando com bonecas e com carrinhos, mas nem imaginava que um dia pudesse trabalhar com o automobilismo. "Entre os meus brinquedos preferidos, um era uma jamanta, um carro com vários carrinhos em cima e o outro se chamava Gigantão, tinha duas alavancas e na verdade era uma escavadeira. Eu amava", contou em entrevista às dibradoras.

Única mulher engenheira entre as 12 equipes da Stock Car, Rachel trabalha com a piloto Bia Figueiredo na Ipiranga Racing Team. E não é de se espantar saber que tanto Bia como Rachel nunca haviam trabalhado com mulheres antes. "A Bia é a primeira e única piloto mulher com quem trabalhei em mais de 15 anos", contou a engenheira.

Em meio a risadas, Rachel conta que sua profissão é um grande mistério para a maioria das pessoas. "Minha mãe acha que eu sou piloto e minhas amigas me ligam quando o carro enguiça porque pensam que eu sou mecânica. As pessoas não entendem o conceito do trabalho de um engenheiro de pista."

Paixão universitária

O amor pelo automobilismo nasceu no curso de Engenharia Mecânica que fazia na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, e a primeira barreira foi enfrentada ali. "Nas primeiras aulas, num curso de 30 a 60 homens, tinha no máximo duas mulheres. Já começou o desafio ali", relembrou.

Mas foi fazendo parte de um projeto estudantil proposto pelo curso – que consistia em criar um protótipo de um carro, construir e pilotar – que ela começou a atuar na área, inicialmente como piloto de teste em um carrinho que só tinha acelerador e freio. 

Rachel nas competições universitárias (Foto: Acervo pessoal)

Com a equipe, foi percorrendo todos os caminhos que envolve o automobilismo, desde a fabricação do carro, a organização, a administração e até se tornou capitã da equipe em 2003. "Fui a primeira mulher a entrar numa equipe universitária e aparecer na competição nacional como piloto. Foi um escândalo."

Os cursos de engenharia têm como tradição participar de torneios em equipes que premiam o desenvolvimento de carros de diversas maneiras: off-road, motor a combustão, fórmula elétrico, aerodesign, entre outros. E Rachel classifica essa experiência como muito positiva para seu desenvolvimento. "Agrega tanto ao profissional. Você sai da caixinha e acaba aprendendo todas as profissões porque está dentro do projeto. Tem que saber marketing, administração, fabricação."

E foi um amigo da faculdade – e de equipe – que deu aquela ajuda para que ela iniciasse sua trajetória na área. E assim ela ingressou muito cedo na Stock Car.

Aprendendo e se desenvolvendo

Rachel começou a trabalhar na Stock Car em 2005, no momento em que a categoria passava por algumas mudanças, como aquisição de painéis e sensores para os carros. "O chefe da equipe me deu um computador, um CD e disse: se vira! Aquilo foi um desafio enorme, eu não tinha experiência. O projeto da faculdade não tinha um sensor, era um carrinho off-road, só acelerava e freava e mais nada", contou.

(Foto: Acervo pessoal)

Seu início foi como engenheira de dados e hoje já é engenheira de pista. Ao lado de um grupo de profissionais, Rachel passa o dia analisando as corridas passadas, preparando relatórios para corridas futuras, desenvolve análises para trabalhar com pilotos, faz listas do que é possível testar em cada pista e em cada corrida. Além disso, tem todo o cuidado com o que pode ser melhorado na performance do carro, controle de manutenção, quilometragem e simulação. "Temos uma infinidade de trabalhos que fazemos durante as etapas."

Além da Stock Car, ela já foi assistente local da Toyota na Fórmula 1 por sete anos, trabalhando com a equipe durante o GP do Brasil e também já atuou na GT3.

Rachel também trabalha na GT3 (Foto: Acervo pessoal)

É claro que ela sonhava em trabalhar com a Fórmula 1, mas uma série de fatores acabaram não a levando para a categoria. "Eu levei 9 anos para me formar, tinha a questão financeira, o visto para estar sempre viajando, na época em que poderia fazer isso meu pai não estava bem e eu já tinha 5 anos de experiência e estava crescendo na profissão. Fiz uma escolha, fiquei por aqui, casei e tive minha filha", contou.

Alice James tem seis anos e, assim como foi com a mãe, a brincadeira com os carrinhos é algo bem natural em casa. "Quando ela nasceu, eu já tinha uma coleção inteira de Hot-Wheels. Só comprei uma garagem, um posto de gasolina e é com isso que ela brinca. Ela adora. Acabou de fazer aniversário e pediu um carrinho de controle remoto, é apaixonada", revelou.

A filha de Rachel tem 6 anos e também brinca com carrinhos (Foto: Acervo pessoal)

Difícil falar se a garotinha seguirá os mesmos passos da mãe pioneira, mas vivendo o ambiente do automobilismo desde cedo, a chance é grande. "Vamos ver. Ela frequenta muito oficina, gosta de ficar sentada nos carros. O sonho dela é alcançar os pedais dos simuladores que tem na equipe para conseguir brincar."

A primeira engenheira e a primeira piloto

Rachel e Bia trabalham juntas desde 2018 e essa parceria era algo que a engenheira esperava muito. Ela esteve perto da piloto em 2005, quando a empresa que patrocinava a equipe em que ela trabalhava também patrocinava a piloto. "Ela, às vezes, aparecia no box e eu ficava maravilhada. Ela corria na Indy e era uma ídola pra mim", contou.

Depois, elas se cruzaram em 2014, quando Rachel estava afastada por licença-maternidade e Bia foi correr na equipe em que ela estava. "Nossa, fiquei arrasada! Tanto fiz e corri atrás que consegui fazer as duas últimas corridas do ano para trabalhar com a Bia e foi fantástico."

Rachel e Bia juntas na Ipiranga Racing (Foto: Arquivo pessoal)

Desde 2018 elas estão juntas na Ipiranga Racing Team e para Rachel não há diferença entre trabalhar com Bia Figueiredo ou com um piloto homem, mas o simples fato de estar em um ambiente ainda tão masculino ao lado de uma mulher, tem muito valor. "A nossa trajetória, a luta e tudo que conquistamos tem um 'quê' diferenciado. Tem muita coisa que mulher passa que só as mulheres sabem e entendem. Então, acho que isso é uma coisa que fortalece a minha conexão com a Bia do que com um piloto homem. Temos uma troca mais próxima e genuína, uma coisa assim, com menos reservas", disse a engenheira.

Grande nome feminino do Brasil no esporte a motor, Bia valoriza a parceria com Rachel. "Quando eu soube que teria a Rachel como engenheira foi ótimo. Ela sempre foi muito detalhista, técnica, organizada, séria, comprometida, então eu sabia que ia ser super bacana. E pelo fato de sermos apenas as duas mulheres que mexem diretamente no carro na Stock Car, é algo muito legal também", declarou a piloto ao blog.

Bia também não vê diferença entre ter uma engenheira ao invés de um engenheiro, mas assim como Rachel, a relação acaba tendo mais cumplicidade. "Falar de assuntos de mulher de maneira mais aberta que eu não poderia falar com outros engenheiros, por exemplo. Com ela fico mais à vontade."

Rachel foi a primeira engenheira comm quem a piloto Bia Figueiredo trabalhou (Foto: Acervo pessoal)

A piloto também citou como exemplo a habilidade das mulheres em lidar com vários assuntos ao mesmo tempo. "Quando eu estou falando com o Andreas (proprietário e engenheiro-chefe da equipe) eu só falo sobre o carro, não posso mudar muito de assunto. Tem que ser uma coisa muito específica porque ele está centrado naquilo. E com a Rachel eu falo do carro, mas se lembro de outra coisa, como algo do treino ou do horário, eu mudo de assunto e a gente vai e volta, fala de 300 coisas com facilidade. O Andreas não consegue e ele fala isso, que a gente está num assunto e depois vai pra outro e ele precisa terminar uma coisa pra falar de outra. Então acho que é aquilo da mulher ter capacidade de cuidar de vários assuntos ao mesmo tempo", reforçou.

Um novo automobilismo 

Rachel vê com bons olhos a chegada da W Series (categoria feminina de automobilismo) e conta que toparia trabalhar nessa área. "Meu sonho é ver mais a presença feminina fazendo parte desse mundo. É uma causa que eu apoio muito, mas para chegar na Fórmula 1 tem que ter várias coisas. Tem que ser bom, tem que ter contato e muito dinheiro. Não vejo como impossibilidade para as mulheres, ainda mais vendo tudo como está acontecendo no mundo agora."

Equipe de pilotos e engenheiros da Ipiranga no autódromo de Goiânia (Foto: Acervo pessoal)

Nesses tempos de pandemia, Rachel acha que é tempo da categoria se reinventar. "Um dos grandes impactos no nosso setor automobilístico é ver o quanto a gente é essencial e como certas coisas podem ser simplificadas e reduzidas. A Fórmula 1 está no spot disso tudo e eles já estavam enfrentando várias crises por conta do custo do torneio, então espero que com o automobilismo se reinventando, facilite pelo menos essa parte financeira, que pra mim é a principal barreira de todos os pilotos e ainda mais das mulheres."

Rachel sonha com uma categoria mais equilibrada para ter mais equipes no grid e, sem esquecer de onde aprendeu o bê-a-bá da engenharia, acredita na inclusão dos jovens no meio automotivo. "Quando comecei, as pessoas estavam ali mais por uma questão familiar do que capacidade técnica. A coisa foi ficando mais séria e com a implantação de novas tecnologias, surgiu a necessidade desse ramo se renovar e trazer profissionais capacitados. E a maneira mais comum de se trabalhar com isso era por indicação, não por currículo."

Rachel com os estudantes na oficina (Foto: Acervo pessoal)

Um trabalho que ela já vem desenvolvendo é levar as equipes universitárias para conhecer e vivenciar esse mundo, antes mesmo de decidirem se é com isso que querem trabalhar. "Os estudantes conhecem o espaço da corrida e passam o dia com a gente. Ajudam os mecânicos a montar o box, fazem reconhecimento de pista com os pilotos, conversam com chefes de equipe, andam no paddock. E falo para eles aproveitarem e distribuir currículos", contou.

Rachel valoriza demais a troca com os estudantes e acha importante abrir esse espaço, mas ela também tem suas exigências." Quando eles chegam para conhecer nosso trabalho e não tem nenhuma mulher na equipe, eu dou bronca. Falo que tem alguma coisa errada nesse grupo porque tá faltando uma mulher ali."

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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