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Caso Jean: a violência contra a mulher e os crimes que o futebol ainda cala

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18/12/2019 11h57

(Foto: Reprodução)

*Por Renata Mendonça e Roberta Nina

Na manhã desta quarta-feira, Jean – goleiro do São Paulo – foi preso nos Estados Unidos após ter sido denunciado pela esposa Milena Bemfica por agressão. O jogador estava de férias com a família em Orlando com a mulher e duas filhas.

Milena postou vídeos na internet durante a madrugada dizendo estar trancada no banheiro e mostrando as marcas da violência em seu rosto. O governo do Estado da Flórida confirmou a detenção de Jean após a denúncia da esposa e o caso foi registrado na Orange County Sheriff Office sob o número 19036025 por violência doméstica.

Em nota oficial nas redes sociais, o clube paulista se manifestou. "O São Paulo Futebol Clube informa que acompanha o caso envolvendo o atleta Jean Paulo Fernandes Filho e aguarda apuração dos fatos para definir as medidas cabíveis. Em seus quase 90 anos de existência, o São Paulo construiu uma história pautada por princípios sólidos de conduta dentro e fora de campo, e não abre mão deles."

No fim do dia, o clube se posicionou de novo de maneira mais concreta, dando indícios de que rescindirá o contrato do jogador.

"O São Paulo comunica que tomou uma decisão sobre o futuro do atleta Jean Paulo Fernandes Filho após averiguar detalhes do episódio ocorrido na data de hoje. Por questões legais que impedem qualquer iniciativa durante o período de férias, vigente neste momento, o clube tomará as medidas cabíveis tão logo esta etapa se encerre.

O São Paulo reforça que vestir a camisa desta instituição representa vestir também valores dos quais jamais abrirá mão. O jogador de futebol é exemplo para a sociedade – forma opinião e influencia comportamento – e por isso tem de ter consciência daquilo que representa pelo que faz não só dentro, mas também fora de campo, e consequentemente da responsabilidade que carrega.

O São Paulo não tolera e não admite episódios como os que foram noticiados hoje, de violência contra a mulher."

É imprescindível que os clubes realmente tomem atitudes diante de casos de tamanha gravidade. O futebol (clubes, torcedores, entidades esportivas como um todo) muitas vezes se omite de situações assim, relativiza a violência contra a mulher e até mesmo ignora denúncias para não ter de lidar com elas. Afinal de contas, pouco importa se um jogador agride sua mulher, o que importa é o que ele faz dentro de campo, né?

Essa é a lógica que prevaleceu em muitos esportes nas últimas décadas. Quantos casos gravíssimos de violência doméstica foram denunciados na NFL (liga de futebol americano) e ignorados pelos organizadores do torneio? Quantos casos apareceram por aqui e nunca foram devidamente apurados – aliás, foram esquecidos enquanto os jogadores seguiram com a carreira intacta? Houve até mesmo condenações minimizadas – o atacante Robinho foi condenado por estupro na Itália e por aqui continuou jogando normalmente no Atlético-MG na mesma semana em que recebeu sua sentença em 2017; o goleiro Bruno ainda cumpre pena pelo assassinato da mulher e seu crime é relativizado por muitos torcedores que até fazem piada com o caso (ele também coleciona propostas de clubes menores pra voltar a jogar).

 

Tem quem ache que essa não é uma discussão que faz parte do esporte, mas é única e exclusivamente um caso de polícia. Aí é que está o problema. O debate na esfera esportiva é tão importante quanto. Justamente porque no esporte existe um agravante: o agressor, em geral, é uma pessoa pública e isso faz com que qualquer denúncia tenha um peso muito maior para a vítima. "Você vai acabar com a minha carreira", é o que diz um print do goleiro Jean em conversa com a esposa após o vídeo dela. Isso é o que as mulheres mais ouvem quando ousam denunciar uma violência (especialmente por parte de um homem "famoso"). Quem está acabando com a carreira não é quem denuncia – é quem comete o crime.

A cada 4 minutos, uma mulher é agredida no Brasil, segundo os dados oficiais. No ano passado, foram 145 mil casos de violência contra a mulher, contando apenas as que sobreviveram para contar essa história triste. A frequência com que acontecem casos assim evidencia a gravidade do problema. E não é apenas caso de polícia – porque muitas vezes a mulher não consegue denunciar, seja pela pressão que sofre do companheiro ou da família, pela pressão que sofre na delegacia ou tantas outras questões complexas que envolvem isso -, é caso para debater a fundo para entender o que leva isso a ser tão frequente, não só no Brasil, mas no mundo.

Foto: AGIF

Muita gente tem a ilusão de que o homem que comete violência é um monstro. Não é. Ele pode ser o advogado bondoso, o médico competente e, até mesmo, o jogador de futebol, seja ele tímido ou extrovertido, tranquilo ou estourado. Não existe perfil do agressor, existe uma cultura na sociedade que diminui as mulheres e ajuda a explicar por que tantos homens agridem suas companheiras.

Por isso é tão importante debater essa denúncia envolvendo o goleiro Jean. Antes, uma situação dessas com um jogador de futebol provavelmente teria passado (passou) sem qualquer repercussão. Ou pior: a denúncia teria se virado contra a vítima. As reações seriam em defesa do jogador, acusando a vítima de "inventar" uma situação para se promover. Quantos casos antigos foram silenciados no futebol pura e simplesmente porque nunca levamos a sério a acusação de uma mulher contra um ídolo esportivo? Aliás, vale mencionar que a denúncia de violência doméstica envolvendo Jean apareceu no mesmo dia em que repercute também nas redes sociais uma foto do zagueiro tricolor Arboleda vestindo a camisa do Palmeiras – e tem gente que está dando mais importância e tratando como problema maior o caso do equatoriano.

Que nem o São Paulo, nem qualquer outro clube de futebol escolha se omitir diante de casos assim. O clube paulista, inclusive, é um dos únicos a ter criado um canal de ouvidoria com as torcedoras para acolher denúncias de assédio e fez ações importantes para combater a violência contra a mulher nos últimos anos. É preciso que o futebol pare de se calar e de silenciar crimes como esse.

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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