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Capitã do São Paulo: "Irrita o branco julgar como o negro deve se sentir"

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20/11/2019 04h00

Ary Borges, capitã do São Paulo (Foto: Mariana Pereira)

Por Mariana Pereira, especial para as dibradoras 

"Resistência: Ação ou efeito de resistir, de não ceder nem sucumbir; Aptidão para suportar dificuldades; Recusa de submissão à vontade de outrem". Esses significados foram retirados do "Dicio, Dicionário Online de Português", mas poderia ser da vida de Ariadina Alves Borges e de tantos outros negros e negras que combatem o racismo.

Mais conhecida como Ary Borges, a capitã e camisa 10 do São Paulo não pensou duas vezes quando escolhida por esta reportagem para ser a protagonista pelo Dia da Consciência Negra. "Sim, eu topo. Eu quero ser voz da luta do negro", afirmou a atleta.

Campeã da Série A2 do Brasileiro Feminino e recém vice-campeã do Paulista Feminino 2019 (o São Paulo perdeu o título para o Corinthians pelo placar de 4 a 0 no agregado), Ary lidou com as dificuldades da vida desde muito nova. Aos 2 anos de idade, viu seus pais deixarem o Maranhão, sua terra natal, rumo a São Paulo em busca de uma vida melhor. Durante quase toda sua infância, teve na avó materna a figura de "mãe".

Campeã brasileira da Série A2 pelo São Paulo (Foto: Renata Mendonça/ Dibradoras)

"Surgiu uma oportunidade de trabalho e eles foram. Minha avó cuidou de mim e quando tudo já estava melhor por aqui, eu vim encontrar meus pais. Eu já tinha 9 anos", contou a jogadora, que hoje faz pelo irmão Enzo Miguel, de 4 anos, tudo o que não pôde ter dos seus pais.

"Eu mimo ele demais, é até difícil falar 'não'. A gente faz por ele tudo o que meus pais não puderam fazer para mim. Eu não tive essa presença familiar que hoje ele tem", explica Ary. Quem frequenta os treinos e jogos do São Paulo feminino já conhece o rostinho de Enzo. "Ele quer estar presente em tudo o que eu faço no clube. Até tomar café da manhã com o grupo ele quer", completa.

Consciência negra não só pelo dia, mas pela luta

A figura do irmão aumentou o desejo de Ary Borges em ser exemplo de tudo o que envolve negros e negras. "Quando você tem alguém que te tem como exemplo é uma responsabilidade maior. As coisas que eu luto, e uma delas é a questão de ser negra, é por ser um exemplo para ele e para as outras pessoas", diz a camisa 10.

Prestes a completar 20 anos de idade (28 de dezembro), a capitã do São Paulo não se assusta com a visibilidade que vem ganhando junto ao futebol feminino. Muito pelo contrário: ela se incomoda com quem tem esse alcance público e não o aproveita para levantar a bandeira contra o preconceito.

Ary e seu irmão Enzo (Foto: Reprodução Instagram)

"Eu hoje sou uma figura pública, consigo alcançar não tantos quanto um Neymar consegue. Por isso eu não consigo ficar quieta em relação a isso e não entendo como eles (Pelé, Ronaldinho Gaúcho, Neymar) conseguem viver sabendo que as pessoas que são da mesma cor que eles, que se sentem representadas por eles, estão sofrendo racismo. Eles não se manifestam, nem uma mensagem de apoio", enfatiza a atleta.

Dados alarmantes

O racismo está presente em todos os âmbitos da nossa sociedade, independentemente de aumentar anualmente o percentual da população declarada de raça preta. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2018 o Brasil tinha 19,2 milhões de pessoas que se declararam preta, 4,7 milhões a mais que em 2012 (alta de 32,2% no período).

Ainda segundo o Instituto, uma das possibilidades para tal aumento é o reforço das políticas afirmativas de cor ou raça. E se cresce a percepção de negros no Brasil, diminui os considerados brancos, que desde 2015 perderam o posto de "cor dominante" para os pardos, que passaram a representar a maior parte da população (de 89,6 milhões em 2012 para 96,7 milhões em 2018).

(Foto: Reprodução/IBGE)

A conta não fecha quando o Ministério Público do Trabalho mostra um aumento de 30,4% no número de denúncias por discriminação em razão da origem, raça, cor ou etnia. Para a crescente intolerância com os negros, Ary tem uma suspeita.

"Eu fico me perguntando o que está acontecendo no mundo pro racista parar de ter medo de ser racista. Alguém no nosso país deu liberdade pros racistas aparecerem", apontou a jogadora, que completou: "Mas não é só o 'bonito' (Presidente da República) aqui, é no mundo… O tanto de caso que aconteceu nessas semanas. A gente só está afundando em relação a isso. Está acontecendo e nada sendo feito, só aquela bela passada de pano."

O futebol como forma de conscientização

Trazendo o tema para o mundo em que a camisa 10 vive, um levantamento realizado pelo Globesporte.com mostrou que quase metade dos atletas negros das Séries A, B e C já sofreu racismo no futebol.

Ary nunca presenciou o que Taison e Dentinho, por exemplo, viveram recentemente na Ucrânia, mas tem a resposta pronta quando questionada o que faria se atos racistas acontecessem durante uma partida do seu time.

"Eu paro o jogo, falo pro meu time se retirar na hora… Eu entendo quem fique em campo e lute contra aquilo, mas eu peço pro meu time sair e isso tinha que ser regra. Eu não teria estômago para suportar isso. E se eu não saísse de campo por algum motivo, eu pediria para ser substituída", declarou a atleta.

O lugar de fala precisa ser ocupado por quem vive e sente o preconceito. No meio de tantos comentários e afirmações sempre que o racismo faz mais uma vítima dentro do futebol, um em específico tira a jogadora do sério.

"A maior escrotice para mim é quando o branco quer dizer o que o negro tem que sentir quando sofre com o racista. Você querer julgar o que o outro tem que fazer? Isso me irrita muito. Fica quieto, apenas se solidariza e ponto", enfatizou Ary.

Mesmo engajada na luta, a camisa 10 são-paulina ainda não tem a resposta para uma possível solução que possa pôr fim ao preconceito no mundo da bola. Entretanto, sente que o que está sendo feito é muito pouco perto dos constantes casos registrados e da grandeza do esporte.

"Tá na hora de parar de ficar só com aquele negócio de plaquinha sobre racismo. Tem que entender que o futebol hoje influencia o caráter do ser humano. O clube precisa vestir a carapuça de que influencia na sociedade", disse a jogadora, que aproveitou para enaltecer o trabalho feito pelo Bahia e seu treinador, Roger Machado.

(Foto: Rebeca Reis)

"O Bahia para mim hoje é o maior exemplo de quem entende o que é o futebol, e muito disso por ter o Roger, que é um treinador negro. As lutas do Roger são as mesmas do Bahia", explica Ary.

E as suas lutas, Ary, são as mesmas que as nossas e as de milhares de outras pessoas, independentemente dos tempos difíceis. Como você mesma enfatizou: "Você não pode desistir, tem que conscientizar o máximo que der".

Por mais "Arys" no nosso futebol, no nosso país!

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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