Topo

Dibradoras

O 'aborto' também pode ser paterno: as filhas sem pai que o esporte adotou

Renata Mendonça

09/08/2019 04h01

Foto: Reprodução

O Dia dos Pais é para celebrar a importância da presença deles na criação dos filhos, então não há nada mais apropriado para o momento do que falar sobre as tantas crianças que crescem sem essa referência. O Bahia chamou a atenção para essa questão ao fazer uma campanha maravilhosa alertando para a conscientização sobre a enorme quantidade de filhos "sem pai" que vivem no Brasil sem terem o registro do nome de seus progenitores na certidão de nascimento.

"Se o Bahia é amor, que o amor vença! 5,5 milhões de crianças no Brasil não possuem o nome do pai no registro", dizia a mensagem do clube baiano em vídeo divulgado na última semana. Como ação para além da campanha, o Bahia ainda disponibilizou exames de DNA gratuitos e profissionais para tirar dúvidas sobre o reconhecimento de paternidade em sua loja oficial no estádio da Fonte Nova.

 

Um cenário tão comum, que se repete no esporte brasileiro. Aliás, o esporte muitas vezes é quem salva essas crianças brasileiras que têm uma infância dificílima em uma casa sem pai e muitas vezes até sem mãe, porque todo o sustento da casa recai sobre ela, que trabalha em dobro para garantir a comida para seus filhos.

Foi o que aconteceu com essas duas mulheres incríveis, que venceram na vida pela luta de suas mães (que também foram pais) e pela persistência que tiveram no nos esportes que escolheram – que não foram exatamente os mais bem-aceitos para meninas praticarem.

Aline Silva foi vice-campeã mundial na luta olímpica e representa o Brasil nas principais competições da modalidade. Marta é recordista absoluta no futebol, a maior jogadora de todos os tempos. As duas tiveram inúmeras dificuldades ao longo da carreira, mas o primeiro obstáculo que tiveram na vida foi a ausência de um pai na criação. Contamos aqui um pouco dessas histórias.

'Deixa ela'

Foto: Reuters

Para uma menina que cresceu na década de 1990, jogar futebol era uma ousadia sem tamanho. Então imagine para uma garota que nasceu em uma cidade de pouco mais de 10 mil habitantes? Os burburinhos de Dois Riachos não falavam outra coisa. "Aquela menina-macho jogando bola no meio dos meninos, onde já se viu?", questionavam. A culpa era sempre da mãe, dona Tereza, que nunca estava em casa.

Nem poderia estar, ou seus filhos não conseguiriam comer. O pai de Marta abandonou a família quando ela tinha um ano. Sobrou para a mãe criar os quatro sozinha (dois meninos e duas meninas) e sustentá-los. Ela trabalhava muito por isso, foi lavadeira, empregada doméstica, zeladora. Enquanto isso, a garota ficava na casa dos avós e ia jogar bola com os primos escondido dos irmãos, que não gostavam da ideia. A cidade toda comentava e cobrava dona Tereza: "A senhora vai deixar sua filha jogar no meio dos meninos?". "Deixa ela", a mãe respondia. Quando os irmãos corriam para bater na menina ao pegá-la no meio do campo de terra com os garotos, era a mãe que a protegia. E, aos 14 anos, quando ela teve a oportunidade de viajar para o Rio de Janeiro para um teste no Vasco, mesmo receosa e insegura, a mãe não a impediu de partir.

Marta recebeu prêmio da CBF das mãos de sua mãe, dona Tereza (Foto: Lucas Figueiredo/CBF)

"Peguei um ônibus sozinha, demorei 3 dias para chegar no Rio e começar a jogar no Vasco. Foi porque um dia minha mãe me permitiu seguir esse caminho que eu me tornei o que sou hoje", reconhece a craque, em entrevista às dibradoras neste ano.

"Passei por muitas dificuldades, meu pai saiu cedo de casa, minha mãe criou os filhos sozinha, e nós não tínhamos dinheiro para conseguir comprar uma chuteira ou pagar a inscrição de um campeonato. Essas coisas foram ficando dentro de mim. Mas eu nunca desisti e segui meu sonho".

Foi pela coragem dela e inspirada pela mãe, que Marta foi "adotada" pelo futebol. Driblou os adversários, o preconceito, e se tornou a maior jogadora de todos os tempos, a maior vencedora dos prêmios de melhor do mundo da Fifa (seis troféus), a maior artilheira da história da seleção brasileira. O pai, que escolheu não participar da criação dela, talvez hoje esteja um tanto arrependido

'Sempre culparam minha mãe, nunca o meu pai'

Foto: COB

Aline Silva é hoje o maior nome da luta olímpica do país. Foi a primeira brasileira a conquistar uma medalha em um Mundial da modalidade – ficou com a prata em 2014 -, tem outra prata e um bronze nos últimos dois Jogos Pan-Americanos e coleciona medalhas no esporte. Mas até chegar ao topo, foi preciso também passar pelo fundo do poço. E isso aconteceu mais cedo do que deveria para ela, quando a garota tinha apenas 11 anos de idade.

A história começa um pouco antes disso, porque Aline foi abandonada pelo pai quando tinha menos de um ano. Ele foi morar com outra família, aparecia vez ou outra, mas nunca foi presente, nem nunca se propôs a pagar uma pensão alimentícia. A garota também reforça que proibiu a mãe, dona Lídia, de entrar na Justiça contra ele por isso. "Eu queria ter um pai, não dinheiro. Queria ter o afeto. Ela (mãe) sempre respeitou e batalhou demais. O dinheiro que eu não deixava minha mãe pedir pra ele, ela tinha que trabalhar em dobro pra conseguir", contou a atleta às dibradoras.

A mãe dela teve todos os empregos possíveis e se desdobrava para conseguir colocar comida em casa. Mulher negra, da periferia e mãe solteira, não foram poucos os desaforos que ouviu e suportou nos empregos por onde passou, apenas porque não tinha alternativa. Até que um dia, trabalhando como atendente de telemarketing até altas horas da madrugada, a mãe voltou para casa e sua filha não estava lá.

"Ela trabalhava até de madrugada, voltava 3h da manha. Eu ficava na rua e voltava às 2h. Nesse dia, eu não voltei, e ela foi me encontrar desmaiada num quarteirão. Eu estava em coma alcoólico, aos 11 anos. Ela me levou para o hospital e o médico disse: 'onde a senhora estava para a sua filha ficar nessa situação?'. As pessoas sempre culparam minha mãe. Nunca ninguém falou do meu pai, nunca ninguém perguntou onde ele estava", diz.

Aline e a mãe, dona Lídia (Foto: Arquivo Pessoal)

Por conta desse episódio, a mãe procurou uma escola particular – que ela também teve de se desdobrar pra pagar – para que a filha pudesse ter atividades o dia todo. Foi aí que Aline começou na luta, primeiro no judô, até deslanchar de vez no esporte que virou sua paixão, o "wrestling", ou luta olímpica.

"Eu nunca vi minha mãe em casa, ela abdicou da vida inteira dela só pra me criar. O momento que mais me emociona no esporte foi quando eu ganhei o primeiro Mundial Júnior em 2006, primeira vez que tive um título internacional. Voltar pra casa e ver o brilho nos olhos da minha mãe, o orgulho que ela sentia… era a sensação de que nós duas tínhamos vencido".

Foto: Reuters

Todo dia dos pais, Aline celebra com a mãe que foi quem possibilitou que ela chegasse onde está hoje. A filha conta orgulhosa sobre essa volta por cima, que fez com que dona Lídia pudesse se formar em Gestão Financeira e ainda cursar outra faculdade agora. Mas ela também alerta para o problema do "aborto paterno" sobre o qual pouco se fala por aí.

"É importante que mais pais tenham consciência de que não é só a pensão. Isso não é nada. O que não se compra e não volta e que senti muita falta na infância, um buraco que nunca vai curar, é a referencia paterna, o amor, o afeto. A gente fala muito do amor de mãe, mas o do pai é tão importante quanto. É inaceitável que os pais continuem abortando seus filhos do jeito que acontece na sociedade", finalizou.

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

Dibradoras