O futebol feminino já foi visto assim - o que diriam dessas imagens hoje?
"Elas batem um bolão". Talvez essa tenha sido a frase mais repetida em manchetes de jornais e revistas para se referir a mulheres jogando bola no passado. Um passado, inclusive, que nem faz tanto tempo. Até poucos anos atrás, o futebol feminino era visto assim: sempre com "trocadilhos" sexuais e clichês irônicos.
Uma edição da Revista Placar, uma das publicações mais tradicionais do futebol, resume tudo isso logo na capa. "Futebol feminino: As garotas batem um bolão (e até trocam as camisas depois do jogo)", dizia a manchete estampada sobre uma foto que mais parecia ser de uma Playboy do que de uma revista esportiva. Eram mulheres vestindo minishort, top e fazendo poses sensuais de costas – elas não jogavam bola, eram modelos. A beleza, na época, era mais importante do que a qualidade do futebol. O que importava ali era agradar os olhos masculinos que consumiriam a revista. E isso nem faz tanto tempo, foi em 1995.
Aliás, quatro anos antes disso, em 1991, antes da primeira Copa do Mundo de futebol feminino oficial organizada pela Fifa, uma reportagem do Esporte Espetacular já dava o tom da cobertura da mídia sobre mulheres jogando bola. Apresentadores do programa humorístico Casseta e Planeta foram à concentração da seleção feminina justamente para fazer essas piadas.
"Vim aqui para treinar umas jogadas ensaiadas com elas, umas jogadas na banheira. E elas estão fazendo muito bem essas jogadas", foi essa a frase de Helio de la Peña acompanhando as jogadoras em um treino do Brasil. Coisas como essa geravam risos, gargalhadas até. Mas hoje causam revolta, repúdio, protestos. Hoje, uma capa como a da Revista Placar de 1995 ou uma reportagem como essa de 1991 "não cabem mais", como bem definiu a ex-capitã da seleção brasileira de 2007, e hoje diretora de futebol feminino da FPF, Aline Pellegrino.
"Estamos vivendo uma mudança de sociedade, uma mudança de paradigma. É legal ver essa mudança pelo futebol. Coisas como essa do Casseta e Planeta aconteciam e a gente dava risada. Infelizmente era uma sociedade que aceitava isso. Que bom que o futebol está evoluindo", afirmou às dibradoras.
Calendário sensual
A própria Aline Pellegrino participou de uma ensaio fotográfico do Santos há menos de 10 anos quando era jogadora do clube que, hoje, talvez não faria. Naquela época, o clube criou um "calendário do centenário" com fotos sensuais das atletas do time feminino, já conhecidas naquele tempo por "Sereias da Vila".
Não era obrigatório, mas as jogadoras gostaram da ideia e participaram. Houve também um lançamento de uma linha de biquínis no dia da divulgação oficial do calendário em que elas próprias desfilaram. As fotos de tudo isso foram expostas no hall da Vila Belmiro por alguns dias.
A ideia do calendário era uma forma de "vender" a imagem do time feminino e até eventualmente conseguir patrocinadores para bancá-lo. Uma maneira de divulgação para as jogadoras santistas. E deu certo. A imprensa toda foi cobrir o desfile de lançamento do calendário, todo mundo deu destaque às atletas em poses sensuais. O destaque para elas dentro de campo era o que ainda faltava.
"Na época, ninguém viu nada apelativo. Ninguém pensou nisso. Todo mundo ficou feliz. Só que depois que você amadurece, lê as coisas, você pensa: faz sentido isso? Antes era sempre assim, sempre essa visão da mídia: 'jogadora de futebol, deixa eu ver o que ela tem de atrativo sexual'. Eu fui muito julgada na minha carreira por isso. Só vinham me procurar para fazer matéria de musa. Eu detestava falar disso", disse Alline Calandrini, também ex-jogadora da seleção, que fez parte das Sereias da Vila na época do calendário.
Beleza virou até regra
A ideia de mulheres serem bonitas antes de serem boas de bola chegou até mesmo a virar regra de campeonato de futebol. No Campeonato Paulista de 2001, o regulamento falava em "enaltecer a beleza e sensualidade das jogadoras para atrair o público masculino".
Para participar desse campeonato, as mulheres participaram de um "draft" organizado pela Federação Paulista para escolher as jogadoras das 12 equipes que disputariam o torneio. Um dos critérios para determinar quem entraria nos times era, justamente, a "beleza".
"Temos que mostrar uma nova roupagem no futebol feminino, que está reprimido por causa do machismo. Temos que tentar unir a imagem do futebol à feminilidade. Vamos ter um campeonato tecnicamente bom e bonito", afirmou o então presidente da FPF, Eduardo José Farah, à Folha de S. Paulo na época.
Dezoito anos depois, a mesma FPF tem uma mulher no comando do futebol feminino, que admite o erro cometido à época. "Aquela sociedade reforçava e respaldava a ideia de fazer um campeonato daquele jeito. É o discurso do embelezamento. Mas hoje isso não cabe mais", disse Aline Pellegrino.
Mudança
Nada disso mudou por acaso. Se há 24 anos, a reportagem da revista Placar falava que a "troca de camisas era a parte mais interessante do jogo", hoje as reportagens ressaltam os feitos de Marta, seis vezes melhor do mundo, ou de Formiga, a caminho do recorde da sétima Copa disputada.
Ainda em 2004, quando a seleção brasileira de futebol feminino se preparava para a disputa da Olimpíada, o grande atrativo do time era a presença de Milene Domingues, a bela esposa de Ronaldo que jogava futebol. A imprensa lotava os treinos da Granja Comary em busca de imagens dela. Hoje, não é a beleza que chama a atenção dos jornalistas. É a qualidade do futebol de Marta, Cristiane e cia. São os títulos e recordes dessa história de luta das mulheres no futebol. No embarque da seleção feminina nesta terça, a jogadora mais badalada pela imprensa foi justamente Formiga, a mais velha de todas, e talvez a mais importante desse elenco pela experiência acumulada em seis Copas do Mundo.
"Essas conquistas no campo, os títulos, as jogadoras se destacando individualmente, isso ajuda muito. Que bom que hoje a gente tem outras pautas. Que seja esse o discurso que a gente leve daqui para frente. Queremos que falem da nossa história", pontuou Pellegrino.
A abordagem sexualizada das mulheres no esporte sempre foi uma prática comum na mídia, mas isso tem mudado nos últimos anos muito por conta de uma pressão "social". Em 2016, uma capa do jornal Lance! sobre o jogo São Bernardo e Corinthians pelo Paulista, estampando a cheerleader na Capa com os dizeres "Musa do São Bernardo dá show" viralizou pelo lado negativo, com milhares de torcedoras corintianas se manifestando contra a publicação. Hoje, as capas de revistas estampam as próprias jogadoras, como na edição da Glamour desse mês com Andressinha, e outras que estão saindo com atletas da seleção brasileira.
O protagonismo finalmente chegou até elas, as jogadoras. O destaque agora é para o talento, não para a aparência. A beleza é só um detalhe, o que essas mulheres querem é simplesmente jogar bola – e, futebol, elas têm de sobra.
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