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Depressão, preconceito e banimento: as outras lutas da pioneira do judô brasileiro

Roberta Nina

19/01/2019 09h11

Soraia André, ex-judoca (Foto: Boletim Osotogari)

O significado da palavra japonesa judô é "caminho suave", mas quando falamos sobre a trajetória de Soraia André na modalidade, a caminhada da ex-judoca e primeira mulher a conquistar uma medalha de ouro em Jogos Pan-Americanos (em Indianápolis, 1987), é bem diferente.

Mulher, negra, moradora da periferia de São Paulo e filha de um aspirante a boxeador, a ex-atleta precisou vencer muitas dificuldades antes de se tornar decacampeã nacional de judô e defender a seleção por mais de uma década.

De família muito simples que vivia no Parque Peruche – zona norte de São Paulo, Soraia não tinha ideia do que era o judô. Ou melhor, via esse esporte de maneira totalmente diferente. "Venho de uma comunidade onde todo mundo brigava e, para mim, luta e briga era tudo a mesma coisa. Então eu não queria mesmo fazer isso", revelou em entrevista às dibradoras no podcast pela Central3.

O pai, mesmo de maneira involuntária, transferiu para a filha seu desejo reprimido de ser um lutador e procurou uma academia onde a garota com 12 anos pudesse treinar. Soraia conheceu o judô quando ele ainda era proibido por lei para as mulheres e sua entrada na modalidade aconteceu de maneira muito velada.

Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país", dizia o decreto-lei 3.199 de 14 de abril de 1941, criado durante a Era Vargas e vigente até 1983

"Quando cheguei na academia para treinar, havia 12 meninas por lá, mas elas eram filhas e sobrinhas dos professores, só estavam brincando. Os professores diziam que não havia matriculas abertas. Havia uma resistência inicial por parte deles já que aquelas mulheres nem poderiam estar lá, afinal era uma modalidade proibida", contou.


Se por um lado o pai a apoiava, sua mãe era totalmente contra a ideia de ver a filha praticando judô. Para Soraia, aquele universo era totalmente inverso ao qual estava habituada. Além de começar a praticar uma modalidade vista como masculina, Soraia estava fazendo parte da comunidade japonesa.

"Minha mãe me falava 'você vai virar homem'. Ela era contra e tinha o mesmo discurso da lei, acreditava que ia prejudicar o meu desenvolvimento e a fisiologia feminina. Devagar, minha mãe foi percebendo que aquele era um caminho diferente da comunidade em que eu vivia e que eu poderia traçar, conhecer novas culturas."

Mas sua inserção no esporte não foi tão simples assim. "Como eu era muito 'diferente' das moças que estavam ali, elas viviam fazendo piada com meu cabelo e com a minha cor. Colocavam a mão no meu cabelo e riam. Eu chegava em casa muito triste e, para minimizar esse meu sofrimento, minha mãe alisava meu cabelo", nos contou Soraia que, por conta disso, ganhou o apelido de "Japonegra" (nome que ilustra o livro lançado em 2016: "JapoNegra – Uma história de superação, fé e amor")

Quando Soraia começou a praticar judô em uma academia perto de sua casa, ela foi a 13ª menina a se juntar ao grupo já formado. Quatro anos depois, ela foi a única mulher que resistiu naquele espaço e passou a treinar com os homens.

Início do judô feminino

Como a prática era proibida para as mulheres, não existiam campeonatos de judô feminino. Rumores começaram a surgir no início dos anos 80 de que haveria o primeiro mundial para as mulheres no Rio de Janeiro. E assim, as federações se organizaram para mandar as melhores de cada estado e lá estava Soraia.

"Eu fui onde ninguém sabia que podia ir. Tinha 16 anos quando fiz parte da primeira seleção brasileira", recordou.

Soraia defendeu a seleção por 12 anos e participou dos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988, quando a modalidade surgiu na Olimpíada apenas como exibição e alcançou o 5º lugar. Foram muitas alegrias, mas também foi preciso lidar com as frustrações.

Disputou os Jogos Olímpicos de Barcelona com muita expectativa de ganhar uma medalha, mas não conseguiu e o trauma foi gigantesco. "Faltou muito pouco para me suicidar. Saí de lá e fui cortada da seleção, fui parar em um hospital psiquiátrico, a história é longa. Lidar com a frustração exige um preparo que não tínhamos. Hoje as equipes entendem a real importância do psicólogo na vida do atleta", afirmou.

Soraia participou do revezamento da tocha olímpica em 2016, em Chapecó (Foto: Divulgação)

Seu corte da seleção aconteceu por conta das duras críticas que fez à Confederação de Judô pela falta de repasse de dinheiro aos atletas durante as competições e desvios de verbas. Como punição, foi banida de praticar o esporte.

"Vejo o esporte e as confederações como uma mini sociedade. Não somos educados a nos posicionar, a participar de leis e com o atleta é a mesma coisa. Ele está ali pra cumprir a função dele. Quando me posicionei, estava cansada de ver coisas erradas acontecendo, mas sabia que se falasse, poderia ser cortada. Não foi um posicionamento sem reflexão, eu me programei pra isso. Já tinha disputado diversos campeonatos, mas me posicionei. Paguei o preço, mas pelo menos pude dormir em paz."

Soraia acendeu a pira olímpica na edição 2016 dos Jogos Escolares em Santo André (Foto: Prefeitura de Santo André)

Formada em Educação Física e Psicologia, hoje Soraia dá aulas de judô para crianças e como psicóloga, atende atletas na Prefeitura de Santo André.

"Por ter passado situações difíceis ter e vivenciado a seleção por muitos anos, hoje faço um trabalho com os atletas para buscar resgatar a pessoa que eles são e não só a máquina de resultados como todo mundo enxerga", disse.

Partiu, Angola!

Soraia embarca neste sábado (19/01) para Angola. Recebeu um convite do Sensei angolano Fernando Zage – que ensina o judô para os interessados no quintal de sua casa – para compartilhar sua experiência na modalidade com seus alunos

Alguns professores e amigos de Soraia já viveram essa experiência e agora será a vez dela. A ex-judoca será a primeira mulher e atleta olímpica a viver esse momento.

"Não sei nem descrever como estou me sentindo. A sensação é como se eu fosse uma filha que está voltando pra casa. É uma iniciativa incrível onde vou poder, inclusive, falar com mulheres praticantes. Não sei ainda se vou ensinar ou se vou aprender nessa imersão", contou às dibradoras.

Todo o custo da viagem será bancado por ela, mas a ex-atleta criou uma vaquinha virtual para arrecadar fundos para doar quimonos, material esportivo, faixas e tatames para os participantes. "Já consegui alguns quimonos e medalhas com a Federação Paulista de Judô", relevou a professora.

Soraia aproveitará a viagem para fazer uma imersão pelo país africano. Vai conhecer Luanda e Malanje – que está a 476km da capital –  e revelou o interesse em se mudar para lá. "Vou fazer um reconhecimento do local e, quem sabe, estabelecer uma segunda casa por lá. Já comecei a fazer uma imersão na cultura deles, por exemplo, já estou há alguns dias tomando sopas com poucos ingredientes para viver de fato a rotina deles", relatou.

O projeto conta com a participação de cerca de 100 crianças, adolescentes e adultos que praticam o judô por amor ao esporte.

Para colaborar com a vaquinha, basta acessar o link: https://www.vakinha.com.br/vaquinha/sensei-soraia-na-angola

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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