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1ª seleção feminina teve uniforme herdado dos homens e superação na Copa

Renata Mendonça

07/01/2019 11h21

Foto: Acervo Museu do Futebol / Suzana Cavalheiro

Era maio de 1988, quando a jovem Sissi recebeu uma ligação em sua casa dizendo que ela havia sido convocada para a seleção brasileira. Natural de uma pequena cidade da Bahia, Esplanada, que não tem muito mais do que 35 mil habitantes, aquela seria a realização de um sonho para a menina que sempre rejeitou as bonecas e adotou a bola como seu brinquedo preferido – sofrendo as consequências disso desde cedo.

Pode-se dizer que ir para a seleção naquela época para Sissi era, na verdade, uma utopia. O futebol feminino, afinal, havia sido "legalizado" recentemente apenas – até 1979, as mulheres eram proibidas por lei de atuarem nesse esporte – e não havia qualquer registro da existência de uma "seleção brasileira feminina" à época. Foi por isso que sua mãe estranhou bastante quando ouviu da filha que estaria embarcando para o Rio de Janeiro e, posteriormente para a China, para representar o Brasil no primeiro Mundial organizado pela Fifa para a modalidade (que ainda era uma edição experimental).

"Quando falei para minha mãe que tinha sido chamada para a seleção, ela rebateu na hora: 'que seleção?' Aí eu disse que nós iríamos para a China para o Mundial. Ela não acreditava: 'que China, menina, você não tem idade para isso!"'. E não tinha mesmo. Sissi era menor de idade e precisaria de uma atuorização assinada pelo pai e pela mãe para poder embarcar nessa "aventura". Só que o pai dela estava viajando e não voltaria a tempo. "Eu falei que ela teria que assinar por ele. Sempre fui muito teimosa, nunca aceitei que me dissessem que eu não podia fazer alguma coisa. Eu que não ia abrir mão dessa viagem por causa de uma assinatura", contou Sissi às dibradoras.

Sissi é a que aparece no segundo banco do lado direito, com a cabeça para baixo. Roupas da seleção feminina vinham dos restos da masculina (Foto: Acervo Museu do Futebol / Suzana Cavalheiro)

Foi assim, no improviso e com a mãe imitando a assinatura do pai, que Sissi embarcou para a primeira Copa do Mundo de futebol feminino em 1988. Faltam exatamente cinco meses para o início da Copa na França em 2019, então aproveitamos a data para relembrar como toda essa história começou.

Uniforme masculino

A seleção brasileira que foi à China disputar o Mundial experimental organziado pela Fifa quase não tinha participação da CBF. Quem efetivamente montou aquela primeira equipe foi o Radar, clube forte e tradicional do Rio de Janeiro na época e que tinha um time feminino imbatível. A seleção, na verdade, foi o Radar com uma ou outra atleta de fora para compor o elenco – foi o caso de Sissi, que jogava pelo Bahia na época e acabou convocada.

Não houve nenhuma grande preparação, e as jogadoras praticamente se conheceram no avião, já quando estavam voando para a China. Outra coisa curiosa daquela época foram os uniformes que as jogadoras receberam. Não houve nenhuma confecção especial para elas, então as camisas, shorts, calças e agasalhos que compunham os trajes obrigatórios para as atletas no Mundial eram as sobras daquilo que era entregue para a seleção masculina.

"Todas as roupas que usamos eram do masculino. A gente não tinha nada. O uniforme era gigantesco. A gente dobrava o short para dar certo. Aí ficávamos rindo uma da cara da outra olhando essa situação. Mas na época ninguém se importava com isso, o que importava era a paixão, o sonho. A gente queria mostrar que a gente tinha capacidade. Só que chegamos lá e vimos seleções mega organizadas, com seus próprios uniformes dos seus tamanhos, seu estilo de jogo. A gente nunca tinha jogado junto, só as meninas do Radar", explicou Sissi.

Foto: Acervo Museu do Futebol / Suzana Cavalheiro

Foram 12 times convidados para fazer parte daquela Copa do Mundo: China, Canadá, Holanda e Costa do Marfim (grupo A), Brasil, Noruega, Austrália, Tailândia (grupo B), Suécia, Estados Unidos, Tdchecoslováquia e Japão (grupo C). O primeiro desafio das atletas ao chegar na China foi a adaptação no quesito alimentação. Com costumes muito diferentes dos brasileiros, a cozinha chinesa não agradou muito aquelas jogadoras simples, que estavam acostumadas ao bom e velho arroz e feijão de todos os dias. No caso de Sissi, não restou outra alternativa. "Eu olhava aquelas comidas e falava: não dá para comer isso. Então só comia pão e Coca Cola todos os dias. Era o que eu conseguia comer ali, nem sei como consegui jogar desse jeito", brincou a ex-camisa 10 da seleção.

Conquista histórica

Antes de entrar em campo na estreia contra a Austrália, as jogadoras ouviram o técnico no vestiário sobre a estratégia do jogo. Só que elas nunca haviam jogado juntas e, como o futebol feminino ainda era muito incipiente no Brasil, muitos dos conceitos táticos eram simplesmente desconhecidos das atletas. "Nossa conversa era tipo: seja o que Deus quiser. O bonito de tudo isso é que o Brasil é talentoso. A gente não pode questionar isso, talento a gente tinha de sobra. E foi isso que sobressaiu, a gente foi só no talento. Se não me engano, o técnico pediu para a gente jogar no 4-4-2, e eu não sabia que diacho era jogar 4-4-2, mas eu sabia o que eu tinha que fazer ali no meio campo. Acabou dando certo no final", contou Sissi.

Seleção conquistou o terceiro lugar vencendo a China nos pênaltis em 1988 (Foto: Acervo Museu do Futebol / Suzana Cavalheiro)

A estreia da seleção foi com derrota para a Austrália, mas depois o Brasil se recuperou e venceu a poderosa Noruega por 2 a 1, e a Tailândia por 9 a 0. Nas quartas, vencemos a Holanda e só fomos cair na semifinal justamente para a Noruega, que seria a primeira campeã mundial do futebol feminino. Restou às brasileiras disputar o terceiro lugar – e aí veio a primeira conquista histórica da modalidade para o Brasil. Sissi e companhia venceram as chinesas, donas da casa, nos pênaltis.

Mas, na verdade, a maior conquista advinda daquele Mundial é a história que passou a existir a partir dali. Essas mulheres fizeram parte da primeira seleção brasileira que já existiu e abriram caminho para que hoje mais meninas possam sonhar com isso um dia. A luta pelo reconhecimento delas foi grande e foi o que possibilitou as melhores condições que as jogadoras brasileiras têm hoje na seleção.

Sissi, a camisa 10 daquela seleção, foi uma das maiores craques que o futebol feminino já viu (Foto: Acervo Museu do Futebol / Suzana Cavalheiro)

"A gente tinha que brigar muito ali pelo pagamento da nossa diária e pelo mínimo das condições de trabalho. E quem falasse muito, acabava não sendo convocada depois. Na verdade, a gente sempre foi o 'patinho feito' ali, ninguém acreditava que a gente pudesse chegar a algum lugar. Lembro até que na Olimpíada de 1996, a CBF chegou a comprar nossas passagens de volta ainda na primeira fase com a certeza de que seríamos eliminadas pela Alemanha. Naquele jogo, eu fiz o gol do empate e classificamos. Imagina como eles ficaram? Aí vieram com papo depois de que 'como prêmio' pelo quarto lugar na campanha, a gente ia voltar no avião com a seleção masculina. Até então, eles não nos deixavam chegar perto dos jogadores, era completamente proibido", relembra Sissi.

A Copa do Mundo de 1988 foi o pontapé inicial para o desenvolvimento do futebol feminino pelo mundo. O torneio experimental deu certo, e a Fifa organizou em 1991 a primeira Copa oficial, também com 12 equipes. Agora, a edição de 2019 será a oitava oficial (nona contando com a experimental) e a seleção brasileira buscará o título inédito na competição – desta vez com uniformes especialmente desenhados para elas e até mesmo com transmissão em TV aberta. Em 30 anos, ainda bem, muita coisa mudou, mas se não fossem aquelas mulheres que aceitaram o desafio de embarcar numa viagem para a China sem saber muito o que esperar, vestindo as roupas que eram de um tamanho três vezes maior que o delas em 1988, a história de hoje com certeza seria outra.

 

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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