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Anorexia, desmaios e trabalho de graça: a rotina das cheerleaders da NBA

Renata Mendonça

17/12/2018 12h26

Foto: Getty

Não é nenhuma novidade que esporte para os americanos é sinônimo de entretenimento. As atrações em um jogo de futebol americano ou da NBA costumam ir muito além do que acontece entre os times dentro de quadra, sempre trazem uma apresentação especial do hino americano e exibem nos intervalos as performances das famosas dançarinas (ou cheerleaders) tão tradicionais nos Estados Unidos.

Mas recentemente vieram à tona denúncias sobre uma rotina de trabalho degradante para essas mulheres, que são parte do grande espetáculo que fazem tanto da NFL, quanto da NBA, negócios bilionários nos Estados Unidos. Em abril, surgiram denúncias primeiramente no futebol americano, e agora na última semana, foram as dançarinas da NBA que resolveram falar sobre as péssimas condições de trabalho em que vivem.

Aliás, em muitos casos o "trabalho" é considerado "hobby" pelos empregadores, que por vezes não remuneram as dançarinas em eventos sociais que elas precisam ir ou mesmo pelos treinamentos que elas têm de fazer para ensaiar a performance que farão na quadra. Uma investigação do site americano Yahoo! Lifestyle recolheu depoimentos de 15 cheerleaders que atuaram na NBA ao longo dos últimos anos e revelaram as pressões que sofriam para se manterem magras, além da baixíssima remuneração pelo trabalho.

"Nós tínhamos que nos pesar mensalmente. Isso me deixava maluca. Então na semana em que iríamos para a balança, eu usava os métodos mais doidos para emagrecer, fazia dieta líquida, essas coisas. Houve um ano em que eles nos pesaram logo depois do Thanksgiving (Dia de Ação de Graças, feriado americano que normalmente envolve uma refeição grande em família), e uma das meninas que havia ganhado peso ficou de fora da apresentação", afirmou Sydney Sorenson ao Yahoo! Lifestyle – ela foi cheerleader do Utah Jazz de 2009 a 2012.

"Eu diria que com certeza desenvolvi uma distúrbio alimentar nessa época", pontuou, reforçando que as práticas das dietas líquidas ou até mesmo de vomitar depois da refeição eram muito normais entre as dançarinas.

Foto: Getty

"Minhas colegas frequentemente tomavam laxantes antes das apresentações para poderem comer normalmente mantendo aquela mesma aparência. Eu fiz isso algumas vezes também, porque era muito comum entre nós. Isso é triste, mas parecia normal", disse outra dançarina que atuou no L.A. Clippers de 2011 a 2012 e preferiu não revelar a identidade.

Diante desse contexto, não era tão raro ver alguma cheerleader desenvolvendo doenças como anorexia e bulimia, ou até mesmo desmaiando no banheiro por conta da má alimentação. Kathryn Dunn, que atuou no Dallas Mavericks de 2013 a 2016 conta que encontrou uma colega "desmaiada no vestiário, porque ela havia acabado de vomitar tudo o que havia comido".

A pressão pela magreza era muito grande. Algumas dançarinas relatam situações abusivas que tiveram de passar com as treinadoras por conta de alguns gramas a mais na "meta de peso" estabelecida para elas. Muitas vezes, elas chegavam a receber uniformes de um tamanho menor do que aquele que vestiam porque elas "precisavam caber nesses".

"Minha treinadora me fazia sentar no armário da limpeza antes dos jogos para que eu pensasse se estava fazendo tudo o que podia para perder peso. Era como colocar uma criança de castigo", relatou Lauren Herington, cheerleader do Milwaukee Bucks entre 2013 e 2014. E quando a treinadora achava que ela estava acima do peso, pedia para que Lauren vestisse o uniforme de lycra para fazer um 'jiggle test' (movimento que as cheerleaders fazem com o pompom para frente) diante de toda a equipe. "Ela então beliscava embaixo da minha bunda e do lado da minha barriga e dizia para e perder 2 ou 3 quilos até amanhã para ficar bem".

Conforme descreve a reportagem do Yahoo, Lauren já chegou a processar o Milwaukee Bucks em 2015 pela baixa remuneração das atletas que, segundo ela, ganhavam apenas US$3 ou US$4 por hora considerando os gastos que precisavam ter com rotinas de beleza exigidas pela franquia (porém não bancada por ela). A equipe chegou a um acordo e pagou US$250 mil em indenização a 40 dançarinas na época.

Além da exigência por um padrão de magreza descrito pelas dançarinas como "não saudável", os relatos destacam também a falta de pagamento às cheerleaders por eventos sociais e treinamentos onde elas eram obrigadas a comparecer pela franquia. Elas contam que em seus contratos havia a seguinte frase: "é um trabalho de meio período, mas que exige comprometimento o tempo todo". Por jogo, a média dos ganhos das dançarinas chegava a US$50 ou US$60, menos do que o preço médio do ingresso para uma partida da NBA (que custa cerca de US$ 78). Algumas delas precisavam ter três empregos para conseguirem sobreviver – apenas uma dizia que vivia apenas com o que ganhava como cheerleader.

Foto: Getty

O custo do sonho

A liga de basquete americana, chamada NBA, existe desde 1949, mas foi na década de 1970 que os jogos dela ganharam status de "espetáculo", unindo o esporte ao entretenimento com o surgimento das equipes de cheerleaders de cada franquia. A ideia era aproveitar o tempo dos intervalos para apresentações épicas das dançarinas dentro de quadra – sempre vestindo roupas bem curtas e com a maquiagem carregada.

Só que as apresentações das belíssimas mulheres que roubavam toda a atenção de quem estava na arquibancada passaram a inspirar meninas que cresceram com o sonho de um dia estarem lá. Elas almejam tanto isso que, quando conseguem, não querem deixar a chance escapar por nada – e, por isso, acabam se submetendo às condições péssimas de trabalho e à pressão para terem um corpo em um padrão de magreza bem longe do considerado saudável.

"Aquele era meu sonho há muito tempo. Eu sabia que era muito trabalho e isso nunca me assustou, mas eu nunca percebi o quanto aquilo poderia atrapalhar minha auto-estima. Essa era a parte mais difícil. Uma vez que você chegava lá, você estava disposta a fazer tudo para se manter. Logo que passei nos testes, eles me disseram que eu tinha que emagrecer 5 quilos. Desde então, eu nunca mais me senti boa o suficiente", descreveu Madison Murray, dançarina do Phoenix Suns entre 2012 e 2015.

A investigação conduzida pela reportagem do Yahoo repercutiu bastante nos Estados Unidos e tem feito mais dançarinas falarem sobre isso. Poucas franquias envolvidas se manifestaram sobre o tema, mas um porta-voz do Dallas Mavericks disse ao Yahoo que essas práticas descritas pelas cheerleaders foram eliminadas da equipe há muitos anos. "Uma versão antiga do contrato tinha uma cláusula sobre uma 'política do peso das dançarinas', que exigia que elas permanecessem dentro de cinco quilos de seu peso de desempenho determinado ", dizia a declaração. "Conceitos de imagem como esse foram predominantes e previamente aceitos na indústria; no entanto, não são mais e não existem mais nos Mavs", finalizava a nota.

Foto: Getty Images

"Quem está decidindo que as mulheres não podem ter um peso normal e dançar? Este produto foi criado para um homem e permaneceu assim porque os homens estão em posições de poder ", afirmou Lisa Murray, que foi cheerleader do Golden State Warriors.

Ela ressalta também a importância de um pagamento mais justo para aquelas que ajudam a promover a NBA ao redor do mundo. "Você é pago como um trabalho pouco qualificado, mas realiza um trabalho de alto status. Em que lugar os embaixadores de uma organização são pagos com um salário mínimo?", questiona.

Na NFL, as denúncias que vieram à tona em abril em reportagem do New York Times apontam regras rígidas que as dançarinas precisavam seguir nas franquias. Coisas como "nunca sair na rua com cabelo desarrumado ou sem maquiagem", "sentar como uma garota, cruzando as pernas", "não estabelecer qualquer contato com jogadores", "não frequentar eventos que tenham bebida alcoólica" entre outras. Havia até mesmo determinações sobre higiene, como manter a depilação ou que tipo de absorvente era permitido usar. Além disso, elas eram proibidas de postar fotos julgadas "sexy" pelos dirigentes – uma das dançarinas chegou a ser demitida do New Orleans Saints por isso.

As cheerleaders da NFL também estão vindo a público recentemente para reclamar das condições salariais – a média do que elas ganham chega a US$15 por jogo, enquanto um mascote de uma franquia, por exemplo, chega a ganhar US$65 mil por temporada. Elas questionam as regras que são obrigadas a seguir, enquanto os homens não têm as mesmas restrições sociais que elas.

Diante dessas denúncias vindo à tona, espera-se que haja uma mudança real na maneira como essas mulheres são vistas no mercado. Para dançar, não é preciso pesar 40kg – é preciso estar saudável e ter as habilidades que a dança requer. Não é preciso vestir roupas que deixem todo o corpo à mostra, nem seguir regras ultrapassadas de etiqueta ou comportamento. E não é justo que as franquias da NBA e NFL faturem bilhões por ano e não paguem um valor mais justo àquelas que ajudam a promover sua marca. Está na hora de repensar (e modernizar) o conceito de "cheerleader".

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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