Por que só há uma mulher entre os 64 homens do curso de técnicos da CBF?
Sessenta e quatro homens e uma mulher. Essa é a sala de aula do curso para tirar a chamada "Licença Pro" da CBF, a mais alta certificação para os técnicos profissionais do futebol brasileiro.
Entre os alunos, estão alguns dos mais renomados profissionais dos clubes e da própria seleção brasileira: Tite, Mano Menezes, Roger, Zé Ricardo, entre outros. E está também ela, Emily Lima, ex-treinadora da seleção e atual comandante do Santos no futebol feminino.
"De certa forma, sou um 'peixe fora d'água' aqui, porque sou a única mulher e também a única técnica do futebol feminino a estar no curso", observou a treinadora em entrevista às dibradoras.
Não é coincidência. A Licença Pro é a última etapa de uma série de licenças que a CBF oferece para quem quiser se profissionalizar como técnico de futebol. Antes dela, há a licença C, a B, a A até a Pro, última etapa para receber qualificação máxima – reconhecida até mesmo internacionalmente. Um dos fatores que ainda dificulta para que mais mulheres consigam acesso a esses cursos é o financeiro: para fazer todas as licenças, o investimento necessário é de R$ 42.530.
"Nem é só para mulher que é difícil. Imagina um treinador da série B ou C, não é simples tirar do bolso e pagar. Os grandes treinadores que estão aqui têm o dinheiro tranquilo para pagar porque eles ganham muito. Mas a CBF e a Federação Paulista oferecem alguns tipos de bolsa para ajuda", afirmou Emily, que conseguiu acesso aos cursos por conta dessa ajuda.
A Licença Pro é a mais cara entre os cursos, com o valor de R$ 19.130 por dois módulos (a C custa R$ 5.600, a B é R$ 7.250,80 e a A, R$ 10.550,00). Por conta disso, a maioria dos alunos que dividem a sala com Emily são mesmo técnicos renomados que já atuaram na Série A do Campeonato Brasileiro e têm mais condições financeiras de bancar esse valor. A treinadora, que participa das licenças desde 2016 e já havia completado a B e a A, pediu ajuda do seu clube, Santos, e da própria FPF para poder bancar a Pro, mas acabou "ganhando" a bolsa da CBF.
"Eu fiz a A quando era técnica da seleção e, quando fui falar com a CBF, o presidente eleito (Rogério Caboclo) disse que eu tinha direito de fazer a Pro para completar, já que havia feito a A como funcionária deles", explicou Emily.
A experiência entre os treinadores tem sido muito rica, conforme descreveu Emily. Há diversas tarefas feitas em grupos e discussões na sala que permitem o contato com as diferentes formas de ver o futebol de cada um que está ali.
"A Pro é um curso diferente de todos os outros, porque é um conhecimento muito rico. Eu estou dividindo a sala com Tite, Mano, Zé Ricardo, Eduardo Baptista, treinadores de sucesso, então existe um respeito muito grande. Percebi que dessa vez aqui que eles me chamavam pelo nome, eles já me conhecem de algum lugar. Eu me surpreendi", contou a técnica.
A troca tem sido grande até porque os professores também estão incluindo o futebol feminino nas discussões. Em aulas com especialistas franceses, os professores chegaram a comentar também sobre a estrutura da modalidade feminina, que tem crescido muito em território francês – país, inclusive, que sediará a próxima Copa do Mundo feminina.
"Até nessa última aula, o professor pediu para eu falar um pouco sobre futebol feminino, a minha história de vida, a realidade da modalidade. Porque a nossa realidade do futebol feminino é que ninguém está nem aí pra nós. Até citei para os novos técnicos que estão chegando no mercado que não são respeitados pela imprensa. Falei: eu me sinto assim. E eu não sou treinadora de futebol feminino, eu sou treinadora de futebol", observou.
Emily também aproveitou para elogiar Zé Ricardo, técnico do Botafogo, que "a tratou com o mesmo respeito que tratava os outros treinadores ali", algo que acaba nem sempre acontecendo com os outros.
A presença dela ali também ajuda os outros técnicos a enxergarem um pouco da realidade que vai além do que eles vivem na elite do futebol. "A gente fala e vê aqui coisas que a gente vive mesmo no dia a dia, são aulas muito bacanas, você tem contato com alguns dos principais técnicos do país e dá sempre para aprender um pouco um com o outro. Sou outra pessoa desde que comecei a fazer esses cursos", disse Emily.
Outras treinadoras
Apesar de parecer um cenário pouco favorável para as mulheres como treinadoras de futebol, a verdade é que as coisas têm melhorado. Emily Lima será, na verdade, a segunda mulher a completar a licença Pro da CBF. Débora Ferreira, auxiliar da seleção brasileira sub-17 no futebol feminino, foi a primeira – ela, inclusive, conseguiu o certificado quando apenas 9 técnicos da Série A tinham a qualificação da CBF. A partir de 2019, ela será exigida para que treinadores possam atuar na primeira divisão nacional.
"Os cursos são caros. Mas você tem que pensar na sua carreira. Assim como você pensa em fazer uma faculdade para atingir seu objetivo, esse curso é um investimento para chegar em algum lugar, um investimento de carreira. Ele não vai ser barato, porque nenhum curso de formação é barato. Não dá para fazer todos de uma vez só, mas você pode fazer um, aí melhorar o salário, fazer o próximo, e assim vai. Foi assim que eu fiz", contou a treinadora às dibradoras em 2017.
Agora, já há outras três mulheres completando a Licença A – e que estarão fazendo a Pro em seguida. Ou seja, em dois anos, serão cinco mulheres devidamente certificadas e preparadas pela CBF para atuarem como treinadoras de elite do futebol.
"No meu ponto de vista, é que temos a Fifa favorável a nós. Ela está começando a exigir que mulheres sejam inseridas no futebol. Outra coisa que tem melhorado é as pessoas começarem a enxergar potencial, e não gênero. A mulher precisa estar preparada, ela vai precisar estudar o tempo todo, porque talvez ela tenha só uma oportunidade. Então precisamos aproveitar para segurar essa única oportunidade que aparecer. A nossa realidade hoje é estudar, se capacitar, porque o mercado está pedindo isso", afirmou Débora.
Para Emily Lima, há mais mulheres se interessando por investir na carreira de técnicas e o fato de já existirem exemplos como o de Débora, o da própria Emily e o das três outras que estão por vir, pode estimular outras treinadoras a acreditarem que é possível ocupar esse espaço.
"Eu vejo que tem algumas ex-atletas vindo para essa parte, mas muito pouco ainda dentro do que precisamos. Na licença A, a Michele, a Tatiele e a Ana Lúcia estão fazendo, já tem 3, é algo interessante, vem crescendo, já é um número significante dentro da realidade. Não vejo muitos homens do futebol feminino indo atrás dessa certificação também", pontuou Emily.
"Isso tem que ter um peso para os clubes, não pode o treinador apresentar só o RG para ser técnico. Que os clubes exijam isso também. Para entrar no mercado, é preciso ter conhecimento e competência, as mulheres têm mostrado que estão buscando isso", finalizou
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