As mentiras que as meninas ouvem quando querem jogar futebol
Até pouco tempo atrás – e, infelizmente, em alguns casos essa história ainda se repete hoje em dia -, o maior pesadelo dos pais de meninas era ouvir da boca de suas filhas: "eu quero jogar futebol". Era como se essa simples frase soasse como "eu quero ir para Marte". A ideia de ver sua menina jogando bola era algo tão inconcebível quanto a de aceitar que ela fosse morar em outro planeta.
Porque era praticamente isso mesmo que ela estaria querendo: viver em outro planeta em que fosse aceitável uma menina jogar futebol. No fundo, a sensação delas é um pouco parecida com isso. Quando se veem apaixonadas por futebol, as garotas têm a impressão de que são intrusas em um mundo que, definitivamente, não quer a presença delas ali.
"Futebol não é esporte para meninas". "Menina que joga bola vai virar sapatão". "Como que menina vai jogar bola? Vai ficar com a perna toda roxa, como vai usar vestido depois?". "Menina que joga futebol parece menino".
São frases como essa que Darcie, uma garota de 13 anos do País de Gales, ouviu dos colegas da escola, dos pais dos meninos com quem ela jogava e até mesmo dos seus próprios professores de Educação Física. São frases como essas que cinco em cada cinco meninas brasileiras ouvem quando ousam querer jogar bola na infância.
"As pessoas me criticam dizendo que sou um homem ou que sou lésbica. Eles ficam inventando vários nomes para me xingar. Os pais dizem que os meninos não podem perder para uma menina como eu", contou a garota em entrevista à BBC.
Só que ela já está acostumada. Joga desde os 8 anos e nunca deu ouvidos a essas coisas. Dos professores de Educação Física da escola onde estuda, ela ouviu que "deveria jogar hóquei na grama ou netball, que são esportes de meninas. Futebol é para meninos".
A ideia de que só meninos estão aptos a jogar bola não vem da Biologia. Não vem da Ciência. Vem de algo que a gente aprende desde cedo, sabe-se lá de onde, sabe-se lá por quê. Aliás, dá para saber um pouco de onde – quando percebe-se que os meninos recém-nascidos já têm uma bola ao lado do berço, enquanto as meninas têm uma boneca. Assim, o recado é dado na maternidade: meninos brincam de bola, meninas brincam de casinha.
Para "subverter" essa lógica, mulheres como Formiga, a jogadora que mais vestiu a camisa da seleção brasileira entre homens e mulheres, usavam uma tática simples: arrancavam as cabeças das bonecas e jogavam futebol com elas. Outras, como Marta, até conseguiam espaço para jogar com os meninos, mas na hora dos campeonatos, eram barradas na inscrição, porque "o torneio não era para meninas".
E as mesmas coisas seguem acontecendo até hoje. Dois anos atrás, a pequena Laura Pigatin precisou fazer abaixo-assinado para jogar um campeonato com os meninos. Em 2017, meninas de um colégio do Rio de Janeiro tiveram que se juntar e invadir a quadra para terem o direito de jogar futebol, já que os meninos diziam que elas deveriam ser "líderes de torcida". Os casos seguem se multiplicando e ainda acontecem nas próprias aulas de educação física, como identificou o professor Marcos Monteiro, do colégio federal Pedro II no Rio de Janeiro.
"Eu comecei a perceber que existia essa exclusão (das meninas) porque todo ano eu tinha que dizer coisas pros alunos que para mim eram óbvias como por exemplo: meninos e meninas vão jogar juntos, vão fazer atividades juntos, mas todo início de ano tinham alunas que se assustavam", contou às dibradoras.
"A educação física não é lugar de mulher, infelizmente isso é uma realidade. Eu fui identificando isso muito com a fala dos outros e na fala das alunas. Uma vez fui dar um esporte pro sexto ano e uma menina se assustou quando eu disse que ia jogar todo mundo. Ela disse: 'os meninos não vão nos deixar jogar'. E eu disse: como assim?".
Por promover os esportes em sua aula de maneira mista, com meninos e meninas jogando juntos, Marcos teve de lidar com muitas reclamações dos dois lados. Os meninos diziam que as meninas não sabiam jogar, enquanto elas diziam que eles não as deixariam jogar. Um dos garotos chegou a dizer para o professor que ele não sabia dar aula "porque não separava meninos e meninas".
Mas o problema, segundo Marcos, é que os esportes não são apresentados da mesma forma para meninos e meninas. "Eles ganham a bola, são incentivados a jogar desde quando nascem, enquanto as meninas são ensinadas a cuidar da casa", afirma. E a escola muitas vezes reforça isso ao separar meninos de meninas ou então ao dar a bola para eles jogarem e mantê-las fora da brincadeira.
"As pessoas naturalizam os gostos como se fossem biológicos. Mas eles são culturais. Nos Estados Unidos, por exemplo, a cultura é das meninas jogarem futebol. Isso tem muita influência cultural. A escola às vezes atua pra confirmar isso. As coisas são simples, quando você não coloca meninos e meninas para jogar junto, você está mostrando que eles não pode jogar juntos", observou.
"A desculpa que eu vejo usarem até na escola é que futebol é muito bruto e que as meninas vão se machucar. Mas se é assim, então os meninos também vão se machucar", pontua, reforçando que a ideia de que meninas são mais "delicadas" também é parte da construção social sobre o papel que elas precisam cumprir, e não algo biologicamente justificável.
Proibição
Houve um tempo, entre as décadas de 1940 e 1980, em que a mulher foi efetivamente proibida de praticar alguns esportes. Havia uma lei para isso, inclusive. As justificativas eram as mais bizarras possíveis.
A mais comum delas talvez fosse a do tal "sexo frágil". Elas não seriam capazes de lidar com um esporte tão violento. Mas para além disso, surgiam explicações bastante científicas, vindas até mesmo de médicos que as chancelavam. "(O futebol) é um esporte violento capaz de alterar o equilíbrio endócrino da mulher", disse Dr. Leite de Castro, ainda em 1940, a um jornal de Curitiba.
Em outros casos, os argumentos eram ainda mais específicos. "As mulheres têm ossos mais frágeis; menor massa muscular; bacia oblíqua; tronco mais longo e por isso menos resistente; centro de gravidade mais baixo, coração menor; menos número de glóbulos vermelhos; respiração menos apropriada a esportes pesados; menor resistência nervosa e de adaptação orgânica", dizia a publicação da Folha de S. Paulo de 1961.
Tudo já foi uma desculpa para proibir a mulher de jogar futebol. Desde o suposto "sexo frágil", até os órgãos menores e menos resistentes, passando pela questão da maternidade e terminando com o "problema" da perda de feminilidade.
A discussão chegou tão longe que determinou a criação de um decreto-lei que efetivamente proibiria mulheres de jogar futebol e outros esportes considerados "prejudiciais para o seu corpo".
"Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o CND baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país", determinava o Decreto-Lei 3.199 do Conselho Nacional de Desportos (CND) em 1941.
A proibição caiu somente em 1979, mas até hoje alguns desses argumentos são repetidos para afastar as mulheres do futebol ou de outros esportes considerados "masculinos". Enquanto isso, meninas como a pequena Darcie e tantas outras em todos os lugares do mundo seguem com a bola nos pés desafiando os críticos e provando que elas podem, sim, gostar e jogar futebol tanto e tão bem quanto qualquer menino.
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