Entre antidepressivos e apoio: a árdua denúncia da repórter agredida no RS
No dia 11 de março de 2018, Renata de Medeiros estava no Beira-Rio se encaminhando para a arquibancada onde iria relatar na Rádio Gaúcha as reações dos torcedores no primeiro Gre-Nal do ano. Mas no meio do caminho havia um agressor. Um torcedor descontrolado gritava para ela "puta, vaca, galinha" e daí para baixo. Quando se virou para filmá-lo, recebeu de volta uma agressão física, que só não foi pior porque duas seguranças do Internacional conseguiram conter o indivíduo.
Tudo isso em seu local de trabalho. Seu "escritório" de toda semana, de onde relata para todos os ouvintes o sentimento que se tem na arquibancada – ela exerce a função da chamada "repórter de torcida" da Rádio Gaúcha e trabalha com isso há pelo menos um ano. Ali se sentiu ameaçada, isolada, constrangida. "Tinham pelo menos 100 ou 200 pessoas por perto assistindo aquilo acontecer, ninguém impediu o cara de descer todos aqueles degraus e vir gritar na minha direção, me agredir. Todo mundo ficou paralisado. A omissão também machuca. Eu me senti sozinha naquele momento", afirmou a repórter às dibradoras.
Passaram-se cinco meses daquele episódio, e Renata até hoje sofre as consequências daquela violência em seu dia-a-dia de trabalho. Estar na arquibancada trabalhando passou a ser um desafio para ela. Em todos os rostos em volta, ela via o de seu agressor. E apesar de todos os constrangimentos que isso ainda lhe traz a cada vez que ela precisa repetir o que aconteceu ou enfrentar seu agressor no tribunal, Renata decidiu seguir em frente na Justiça porque entende estar ali representando algo muito maior.
"A parte mais difícil é suportar tudo isso. Pensei em retirar a queixa milhares de vezes, porque o desgaste emocional que isso me causou é surreal. Só queria não lembrar mais que isso aconteceu. Eu tenho sorte de ter ao meu lado uma advogada. Ela dizia: Renata, isso não é mais só por ti, é por todas as mulheres que vão ao estádio e que precisam se sentir seguras para estarem lá. Extrapola a esfera pessoal, está na esfera das mulheres que trabalham e gostam de futebol. Eu só segui porque tinha uma causa muito maior envolvida", disse.
Processo judicial
No dia em que sofreu a agressão, Renata ainda se permitiu fazer toda a transmissão do jogo e, só após a partida, sentiu o peso daquilo que havia vivido minutos antes de ela começar. Foi aí que procurou o Jecrim, a delegacia dentro do estádio do Beira-Rio, para denunciar o ocorrido. Relatou o que ouviu, o que sentiu, a agressão física e foi para casa sentindo que ali seu dever estava cumprido.
No entanto, o Internacional acabou não encaminhando o torcedor para a delegacia naquele dia e, portanto, para seguir com a denúncia, era preciso que o processo fosse feito na Justiça Comum – se ele tivesse sido encaminhado para o Jecrim dentro do estádio, ali mesmo poderia receber sua punição dos membros do Ministério Público que estão no plantão.
Diante disso, Renata foi novamente à delegacia relatar pela segunda vez tudo o que sofreu. "Eu tive que ir pra delegacia, contar tudo de novo, reviver tudo. E ficava pensando: se aconteceu isso comigo, que estava dentro de um estádio, que é super vigiado, que tinha tantas testemunhas, câmeras, e eu já tive toda essa dificuldade, imagina uma mulher que sofre de violência doméstica, né, que é agredida dentro de casa pelo marido e sem testemunha. Eu já estava sofrendo as dores de todas as mulheres do mundo que sofrem algum tipo de violência, isso potencializa um pouco o que eu estava sofrendo", contou.
Na última quarta-feira, a repórter teve que relatar pela terceira vez o que aconteceu na audiência que julgaria o caso. No tribunal, por duas vezes ficou frente à frente com seu agressor, que disse ter feito aquilo porque "ela é gremista" – ou seja, por ter suposto que a repórter em questão torcia para o time rival, o homem se achou no direito de agredi-la.
Renata se manteve forte para não retirar a queixa.
"Ontem prestando depoimento, eu chorei que nem criança. Eu tive crise de pânico trabalhando porque eu enxergava o rosto do meu agressor em todos os torcedores naquele estádio. E tudo isso por um cara que me fez sentir ameaçada, violentada."
"Nas primeiras jornadas (da rádio) depois da agressão, meu corpo tremia inteiro quando alguém me cutucava. Muitas coisas passavam pela minha cabeça. Eu comecei a me tratar em psiquiatra, tomar antidepressivo, remédios para ansiedade, porque só minha força mental não estava dando conta. E isso ainda me botava mais para baixo, porque eu pensava: eu sempre fui muito forte e agora eu estou aqui no fundo do poço. Como podia deixar aquilo me afetar tanto? Mas ainda bem que eu busquei ajuda", disse.
"Essa sensação de insegurança enquanto trabalha é horrível. E eu tinha a impressão de que se eu acabasse com processo eu também acabaria com isso. Mas segui, muito pela força da minha advogada e o apoio que recebi das mulheres".
Apoio
Ao longo dos últimos meses, Renata recebeu mensagens de torcedores dizendo que ela "mereceu a agressão por ter exposto o torcedor", que a culpa havia sido dela por ter "tirado o celular para filmá-lo". No entanto, esses foram minioria. Uma grande quantidade de mensagens de apoio deram a ela a força de que precisava para seguir em frente.
"A maioria das mensagens eram de apoio e vinham de mulheres. Algumas torcedoras me encontravam no estádio e diziam: 'é muito legal ouvir você dando as informações do jogo, eu me sinto acolhida, então não desista, teu espaço de representatividade é muito importante'. E os torcedores do Inter, como eu sempre trabalho em jogos do Inter, quase todo mundo passa por mim, me cumprimenta, e muita gente veio me abraçar, dizer: 'aquele torcedor não representa a torcida do Inter'".
A parte mais dolorosa do processo já passou. Agora, a defesa de Renata apresentará suas considerações, depois a defesa do agressor apresentará as suas, e o juiz irá receber o material para analisar o caso – que se enquadra no crime de injúria. Em cerca de um mês ou um pouco mais ele deverá proferir a decisão. Só que mais do que a punição do torcedor, o que a repórter mais espera que esse processo traga é uma mudança de postura no futebol.
"O que eu gostaria mesmo era que as pessoas deixassem de se acostumar com aquilo que a gente cresceu vendo como natural no futebol. Meninas que forem ao estádio têm que ir com camisa mais larga para nao ser alvo de provocação. Ou as piadinhas sobre elas no futebol precisam ser aceitas, 'porque é normal'. Não é normal. Eu queria que a gente parasse de achar normal esse tipo de coisa, chamar uma mulher de puta, cadela, vaca, ou chamar o negro de maneira pejorativo, ou gritar cantos homofóbicos pro goleiro, isso não deveria ser normal", pontuou.
"E enquanto for normal essa cultura, vai continuar. Meu grande ponto é que a gente denuncie e tente fazer com que isso seja um constrangimento também para quem fez. Porque só quem sofre carrega aquele peso. A gente tem que começar a incomodar também quem faz a gente sofrer."
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