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A Copa delas: repórteres na Rússia dizem que saem “fortalecidas” do Mundial

Renata Mendonça

16/07/2018 08h44

Foto: Divulgação

A Copa do Mundo terminou com uma final inédita e um título histórico para a França. Mas para além do futebol, o Mundial da Rússia ficará marcado de maneira ainda mais especial para as mulheres. Elas ainda são minoria na cobertura do torneio e raridade nas seleções, mas nunca tinham se destacado tanto quanto na Rússia.

Falando de números, foi a Copa que mais teve mulheres na imprensa credenciada para cobrir o torneio. Elas representaram 14% dos jornalistas ali, mas um número já quase 50% maior do que as que estavam no Mundial do Brasil em 2014 (à época, elas eram apenas 10% da imprensa credenciada).

Foi a Copa de Iva Olivari, a gerente da seleção croata que ficava no banco de reservas junto com a comissão, e também de Kolinda Grabar-Kitarovic, a presidente-torcedora da Croácia que marcou presença no pódio. E foi também a Copa das repórteres, cinegrafistas e fotógrafas que estiveram na Rússia representando as mulheres num evento ainda tão dominado por homens.

 

'Não dá pra ver o campo na foto' 'Não importa.' 'É só semifinal de Copa do Mundo mesmo' #teamUOL

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Nunca se falou tanto sobre o protagonismo delas, que finalmente começou a ser notado neste Mundial. As primeiras narradoras, a primeira comentarista na TV, a primeira vez que se repudiou publicamente o assédio que elas sofriam (e sofrem) diariamente. Foram muitas conquistas importantes delas na Copa da Rússia e que podem representar uma mudança histórica e permanente no futebol: as mulheres vieram para ficar e conquistar cada vez mais espaços.

É verdade que ainda sentimos falta de uma representatividade maior nas cerimônias oficiais da Fifa, que ainda colocam como único papel da mulher o do "adorno" para o espetáculo. Assim como tem acontecido em todas as Copas, no encerramento deste domingo uma modelo entrou desfilando ao lado da taça trazida pelo último capitão alemão Philipp Lahm – poderia, por que não, ter sido uma jogadora ao lado dele, uma Alex Morgan, por exemplo, campeã mundial com os Estados Unidos em 2015, já como um convite para a próxima Copa, que será no ano que vem, na França. Já está na hora da Fifa mostrar o protagonismo da mulher no futebol nesses protocolos oficiais em vez de reforçar o estereótipo da "mulher-enfeite".

Natalia Vodianova, a modelo que entrou ao lado de Philipp Lahm com a taça (Foto: Reuters)

Mas se nas cerimônias as mulheres foram secundárias, nas tribunas elas foram protagonistas absolutas.Conversamos com quatro repórteres da imprensa brasileira que estiveram na Rússia para a cobertura do Mundial e contam aqui um pouco das experiências que viveram.

A mensagem que fica é que, como bem descreveu uma delas, as mulheres saem como uma "minoria fortalecida" nesse Mundial.

"A gente está conquistando nosso espaço. Somos minoria, mas somos cada vez mais, e estamos cada vez mais fortes. Acho que a presença da mulher em 2022 será maior dentro das comissões e maior fora, nos estádios, na imprensa, seremos mais e mais fortalecidas, apesar de ser num novo país desafiador pra nós", afirmou Laura Zago.

Repórter da CBF TV, Laura Zago sofreu pelo menos três ataques de torcedores, que tentaram beijá-la durante gravações

Veja os depoimentos das repórteres:

Isabela Pagliari, repórter do Esporte Interativo

Foto: Arquivo Pessoal

"Pra mim, a Copa do Mundo da Rússia foi um desafio pessoal, humano, de relacionamento com uma cultura totalmente diferente, um país muito machista. Eu andei muito sozinha e fazia tudo sozinha. Sofri muito no começo, muitos perrengues com assédio de passar a mão, assédio de taxistas, e tinha o desafio constante de mostrar pra cultura local que eu sou uma mulher e trabalho com isso. No meio esportivo, com os jornalistas, eu já encaro de uma forma mais natural. Essa foi minha terceira Copa do Mundo, as pessoas já se acostumaram, já entenderam que as mulheres estão no meio esportivo também.

A Rússia foi um desafio por ser um país bem diferente do nosso e também de Paris, onde eu moro. Vou levar muitas coisas boas daqui, aprendizado, relacionamento com as pessoas. Eu conheço meninas que sofreram assédio na rua, ao vivo, os caras tentando beijá-las, esse é um ponto delicado, porque eu não quis fazer uma cobertura assim, de colocar minha câmera e entrar ao vivo sozinha na rua, justamente porque eu já sofri com isso na Eurocopa em 2016 na França e eu sei o quanto é complicado. Então se não tem um cinegrafista ou alguém do meu lado, eu não me sinto à vontade para me expor desse jeito. As minhas colegas que sofreram isso estavam com outras pessoas, então o desrespeito já vem mesmo se você está com uma equipe, então imagina se você estiver sozinha. É uma coisa que precisa ser melhorada, os homens precisam ter vergonha disso. Aquele episódia do b***** rosa foi um absurdo e muito delicado, mas serviu para as pessoas perceberem o quanto é desrespeitoso e absurdo o que eles fizeram com a mulher. Mas é um processo.

O que me chamou muita atenção na Rússia, no aspecto negativo, foi o machismo, a desconfiança do olhar dos homens ao te ver trabalhando. O ponto positivo é que é uma cultura diferente, você conhece, às vezes parece que você está em outra galáxia. Mas a forma como eles nos receberam bem, sempre com sorriso no rosto, dispostos a ajudar, nesse sentido achei bem bom."

Julia Guimarães, repórter do Sportv

Foto: Divulgação

"A minha perspectiva foi muito positiva. Foi a minha primeira Copa e eu cresci muito como profissional e no lado pessoal também. Foi uma oportunidade de encarar novos desafios e eu fiquei muito feliz por ter dado tudo certo.

Sinceramente, eu só vi aspectos positivos. A Rússia é um país completamente diferente do que eu imaginava. É um país aberto, em que as pessoas estão prontas e felizes para te ajudar. Me senti muito bem acolhida e quero voltar como turista para conhecer o país fora do clima de Copa do Mundo. Para os russos, foi uma oportunidade para eles se abrirem para o mundo e se contagiarem com os sorrisos e culturas de outros países.

Sobre as mulheres trabalhando nesse Mundial, eu acredito que a tendência é a de esse percentual (14% de mulheres na imprensa credenciada) aumentar cada vez mais. Os excelentes trabalhos que têm sido feitos, sejam em canais de TV, em sites ou rádios, mostram que estamos preparadas para qualquer desafio."

Laura Zago, repórter da CBF TV

Foto: Daniela Avila

"Como mulher, acho que saio muito orgulhosa e muito feliz do trabalho que nós, mulheres, fizemos. A princípio, quando começou a cobertura lá na Granja Comary, tinham muitas pessoas me olhando. Acho que não por mal, mas por ser nova no ambiente, por não ter participado de grandes coberturas de seleção brasileira, então senti muito esse olhar desconfiado. Mas depois foram 53 dias convivendo com muitos jornalistas, foi muita troca que a gente tinha até com os mais velhos, foi um ambiente muito bom pra trabalhar, que eu não via nenhuma diferença. E cada vez foram chegando mais mulheres pra cobertura, veio a Carol como cinegrafista e eu fiquei muito feliz vendo uma mulher nesse papel, porque quando eu não participo como repórter dessa cobertura, eu sou cinegrafista e normalmente sou a única mulher. Então isso foi muito legal. A gente ainda é muito minoria, mas sinto que a gente é uma minoria muito fortalecida e cada vez mais respeitada. É com essa mensagem que eu saio dessa Copa.

Acho que a gente assumiu um protagonismo nessa Copa, seja pelas coisas boas ou ruins. Os casos de assédio foram imensos, mas o que mais me orgulha é que esses casos de assédio são imensos todos os dias e durante todas as coberturas, mas nunca se falou tanto e nunca as empresas fizeram tanta questão de expor isso e apoiar as mulheres nisso. Então isso me deixa muito feliz e fortalecida, porque a gente vê uma mudança até mesmo das empresas em trazer esse tema e fazer questão de trazer esse tema à tona. É muito gratificante ver que nossa causa está sendo exposta. No jogo da Sérvia, depois do que aconteceu nos outros dois jogos na porta de estádio (de beijos forçados), e a quantidade de gente que eu ouvia desde que eu postei o vídeo que eu ouvi falando "deixa ela trabalhar", "não incomoda", falando isso sem me conhecer, outras falavam que tinham visto o vídeo e pediam desculpa e davam apoio, foi muita gente mesmo. E nem era da minha equipe. Isso foi uma coisa que me dava cada vez mais força quando eu estava fazendo as coberturas.

O lado positivo, o que me chamou a atenção foi que a gente imaginava que a Rússia fosse um país muito mais frio, que não estava no clima, e eu vi totalmente o contrário. Os russos envolvidos, muito gentis, prestativos, claro que a gente encontrava um ou outro mais fechado. Mas foram muitos agradáveis e tentavam ajudar com muita paciência, então esse foi um ponto positivo.

Como aspecto negativo me choca o tipo de situação que as mulheres têm que conviver, o assédio, a normalidade como isso é vista pelos homens. Não foi fácil para a mulher viver essa cobertura na Rússia, a gente teve que se privar de muita coisa, de andar sozinha, por conta desse tipo de relação. Acho que isso foi muito negativo, porque a gente vivia com essa insegurança. Às vezes eu queria ir embora, mas eu não podia ir porque eu tinha que esperar meus colegas porque eu não podia pegar Uber sozinha diante de fatos que já tinham acontecido.

Acho que essa Copa do Catar vai ser novamente muito desafiadora para as mulheres. É um país que também tem leis e hábitos culturais bem diferentes entre homens e mulheres. Nos países árabes, não quero generalizar, mas mulheres são vistas como diferentes, não têm liberdade, então olhares na rua provavelmente serão diferentes.

E eu acho que o futuro é esse, a gente está conquistando nosso espaço, somos minoria, mas somos cada vez mais, e estamos cada vez mais fortes, não só a presença de mulheres na seleção, na Croácia, na Inglaterra, acho que a presença da mulher será maior dentro das comissões e maior fora, nos estádios, na imprensa, seremos mais e mais fortalecidas, apesar de ser num novo país desafiador pra nós."

Luiza Oliveira, repórter do UOL Esporte

Foto: Arquivo Pessoal

Essa Copa foi um marco do ponto de vista da representatividade feminina. Vimos mulheres ocuparem espaço de destaque nas mais diversas áreas, o que até pouco tempo atrás seria impensável. Tivemos a Iva Olivari que é gerente de futebol da Croácia. A senegalesa Fatma Samoura que é Secretária Geral da Fifa. Nas arquibancadas, foi emocionante ver as iranianas indo ao estádio pela primeira vez sendo até hoje elas são proibidas de frequentarem estádios no país. As árabes também estão fazendo uma iniciação como torcedoras. Mesmo para quem não está na Rússia, no Brasil vemos mulheres agora como narradoras e comentaristas. Tudo isso é muito representativo.

As mulheres chegaram muito forte. Mas o que eu pude perceber aqui na Rússia é que elas ainda encontram resistência por parte dos homens que não conseguem dividir este espaço em um meio tão masculino como uma Copa. Parece difícil ainda para eles entenderem que uma mulher pode ir ao Mundial apenas porque está trabalhando ou porque gosta de futebol e quer curtir, assim como eles. Mas vai além disso. Neste tipo de evento os homens permitem que seja aflorado um lado mais agressivo e, no caso desta Copa, ainda acredito que exista uma ideia de objetificação da mulher russa, alimentada no mundo ocidental. Muitos turistas vieram com isso na cabeça. Isso tudo contribuiu para os casos de assédio e tornou o ambiente um pouco hostil mais para as mulheres.

Eu acho que a tendência é esse número (da participação feminina) crescer cada vez mais, ainda que seja uma barreira que vem sendo quebrada lentamente. Aos poucos, as pessoas que ainda são resistentes vão se acostumando e esse espaço conquistado vai se consolidando.

Do ponto de vista do trabalho, acho que a Copa do Catar novamente será um desafio. Eu estive em países islâmicos em duas coberturas, nos Mundiais de Clubes no Marrocos em 2013 e nos Emirados Árabes em 2017, e sem dúvida é uma realidade diferente. Vivenciei casos em que homens foram invasivos, não respeitaram o espaço e a opinião da mulher e tiveram atitudes que intimidavam quem não usava a vestimenta típica do Islã.

Acho que os casos assédio são uma preocupação real. Mas em quatro anos toda sociedade tem a chance de evoluir. Até janeiro deste ano, as mulheres na Arábia Saudita não podiam dirigir e hoje já andam com seus carros. Trazendo um pouco mais para a nossa realidade, em 2014, a repórter da TV Globo foi beijada por um torcedor e todo mundo achou engraçado. Hoje, isso é inaceitável. Então todos estamos sempre evoluindo."

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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