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Mulheres relatam assédios e abusos no país da Copa

Renata Mendonça

20/06/2018 11h52

Foto: Reprodução

Embarco nesta quinta-feira para Moscou e, pelo que vejo todos os dias da Copa do Mundo pela TV, não vejo a hora de estar lá. A ansiedade toma conta para viver toda a alegria e a empolgação que só o futebol e um torneio como esse podem trazer. Mas em meio à preparação para a viagem, houve um alerta.

Conversando com um dos jornalistas (homem) que já está na Rússia desde o início da Copa, comentei que minha primeira pauta seria uma viagem sozinha para ver um dos jogos. Na hora, ele me disse: "eu te aconselho a não ir sozinha".

Diante disso, passei a procurar outras mulheres (brasileiras, principalmente) que já estão na Rússia – tanto a trabalho, quanto de férias – para perguntar como está sendo a experiência em um país que, assim como o Brasil, também lidera índices de violência contra a mulher (é o menos seguro da Europa para elas).

As respostas me deixaram um pouco apreensiva. Umas passaram apuros em táxis e Ubers, tendo que encerrar a corrida em locais desconhecidos por não saberem para onde estavam sendo levadas; outras ouviram conversas constrangedoras com os motoristas e se sentiram acuadas; outras ainda passaram por situações invasivas sem conseguir jantar em um restaurante sem que homens aleatórios interrompessem a refeição para uma abordagem abusiva.

Sem contar os toques e olhares indesejados, as tentativas até mesmo de beijos forçados enquanto as jornalistas tentam trabalhar na cobertura do Mundial.

A orientação de alguns veículos de imprensa é para que as mulheres não andem sozinhas de jeito algum e também compartilhem uma foto da placa do táxi que utilizarem antes de embarcarem para que outros da equipe possam acompanhar a viagem.

"Eu estava completamente encantado com a Rússia, até conversar com as colegas de cobertura", afirmou às dibradoras o correspondente do SporTV Fernando Kallas.

"A gente não tem ideia mesmo do que é ser mulher. Eu fiquei horrorizado ouvindo as situações pelas quais algumas repórteres aqui têm passado. O assédio tem sido algo constante, principalmente com taxistas. Há uma preocupação aqui para não deixar as colegas sozinhas", contou o jornalista.

Promoção de cerveja "só para homens" no aeroporto de Sochi (Foto: Fernando Kallas)

Uma jornalista brasileira, mesmo acompanhada com outros homens no táxi, viveu uma situação de constrangimento e intimidação com o motorista. Conversando com ele pelo Google tradutor, o papo fluía bem, até que ele a perguntou se ela tinha um marido em casa. Diante da resposta afirmativa, o homem fez um comentário que o Google traduziu como bastante inadequado.

"Ele respondeu algo que a gente não sabe até agora, mas a tradução mostrou que era alguma coisa do tipo "como ele faz com essa b***** que era uma piada". E aí eu simplesmente parei de falar com ele. Não sei se a tradução foi errada, mas ele começou a ter comportamentos idiotas, eu parei de falar e acabou", contou.

Em outra situação, em uma van voltando do estádio em Rostov, ela conta que foram os olhares abusivos que incomodaram.

"Era uma van da Fifa e tinha uns russos tomando whisky em garrafa de água, um pouco bêbados e tal e, em determinado momento, um cara começou a ser meio babaca. Ficava me olhando e me falando coisas que eu não entendia. Foi bem chato. Eu estava com três meninos e comentei com eles 'pô, esse cara não vai parar de me olhar desse jeito escroto?'. Aí eu falei isso alto e fui encarando ele assim."

"Eu diria que é pior do que aquilo com o que a gente está acostumada no Brasil e esse negócio da língua é meio bizarro porque realmente aumenta um pouco isso (do medo). Porque do mesmo jeito que aqueles caras (do Brasil) fizeram aquilo com a menina (vídeo dos gritos de b***** rosa), os outros caras (daqui) também fazem com a gente, sabe? Eu não consigo ter certeza absoluta porque não entendo a língua, mas eu tenho certeza que rola alguma coisa assim."

Outra brasileira passou por uma situação amedrontadora no metrô. Ela estava sozinha e já era de noite, então estava com o cuidado dobrado. De repente, um grupo de russos começou a olhar e apontar para sua credencial, rindo, fazendo comentários que ela não podia entender.

"Me senti intimidada, não sei o que eles estavam falando, mas olhavam fixamente para mim. Quando desci do metrô, eles desceram também é eu fiquei com medo. Aí vi um cara com a camisa do Brasil e pedi pra ele me acompanhar na saída porque eu estava com medo. Ele foi comigo numa boa e ficou tudo bem. Mas eu também evito pegar metrô sozinha à noite", relatou.

"Os olhares estrangeiros de alguns países incomodam bastante também. Fui em um jogo do Egito onde eu parecia um ser de outro mundo, dentro da coletiva, da zona mista e da sala de imprensa. E os próprios russos olham a gente de uma forma diferente. E nas ruas, eu tô andando muito sozinha trabalhando, me sinto um pouco intimidada. Eles me veem com a credencial, me vem andando, já fui abordada por três homens, mas não sei o que falaram pra mim. Eu entrei numa loja, eu não sei o que eles estavam me falando, mas não me senti confortável. E os olhares meio estranhos, como se a minha presença ali fosse estranha para os homens. Então me senti intimidada algumas vezes nesses dias."

Beijos e toques indesejados

As situações constrangedoras com torcedores, infelizmente, são comuns em todos os lugares do mundo. Episódios em que homens invadem um ao vivo para beijar as repórteres são recorrente – praticamente todas já passaram por isso.

E por mais que insistam em citar um caso do passado que aconteceu com um repórter brasileiro que foi beijado por uma mulher durante um link, não se vê a mesma coisa acontecendo com eles com a mesma frequência – basta perguntar aos jornalistas esportivos quantos deles vivenciaram situações assim e às jornalistas esportivas quantas delas foram submetidas a isso. A recorrência com elas não é coincidência.

Jornalista colombiana é agarrada enquanto trabalha (Foto: reprodução)

A jornalista colombiana Julieth Gonzalez Theran trabalhava para uma emissora alemã em Saransk quando foi surpreendida por um homem que a agarrou e deu um beijo no seu rosto e tocou seus seios.

"Quando estávamos ao vivo, um homem se aproveitou disso, se aproximou, me deu um beijo e tocou meus seios. Eu tive que continuar, depois tentei encontrá-lo, mas ele havia ido embora. Eu compartilho a alegria do futebol, mas é preciso identificar os limites entre afeição é assédio", afirmou ela em suas redes sociais.

A situação se repetiu com uma repórter brasileira, que fazia uma gravação na Fan Fest em Sochi, quando foi interpelada por um homem tentando beijá-la.

"Eu estava terminando a minha entrada ao vivo. Na hora eu não percebi, minha sorte foi que eu consegui desviar muito rápido e ele nem encostou em mim. Eu estava acompanhada da minha equipe, mas foi tão rápido que nem eles perceberam ele se aproximando", contou.

"Eu não fui a primeira e, infelizmente, não serei a última a passar por esse tipo de constrangimento. O que algumas pessoas precisam entender que isso não é engraçadinho, não é piada e não é uma brincadeira no momento de êxtase do jogo. É um desrespeito. Eu estudei, me preparei, cheguei aqui na Rússia e não é pra ficar sendo desrespeitada durante o meu trabalho. Isso não tem graça. E achar isso normal é concordar com uma ideia machista que mulheres estarão sempre à mercê desse tipo de atitude. Gritar o nome do time, fazer festa durante o nosso trabalho faz parte do evento, é normal, natural e aceitável, o futebol tem esse momento de alegria e êxtase. E que bom! Mas há uma distância bem grande entre você fazer uma festa e assediar quem está trabalhando", disse.

Os casos só têm se multiplicado nos últimos dias e não são protagonizados só por russos – há brasileiros e outros estrangeiros fazendo o mesmo.

Números de violência contra a mulher na Rússia

A Rússia é um país que está acima do Brasil no ranking de igualdade de gênero (o país europeu é o 71º, enquanto o Brasil é o 90º), mas que tem leis mais retrógradas do que as brasileiras considerando principalmente os casos de violência contra a mulher.

No ano passado, foi aprovada uma mudança na legislação de violência doméstica que agora permite casos de agressão entre marido e mulher caso eles sejam episódios isolados ou "não deixem marcas". O mais impressionante (e surpreendente negativamente) é que a mudança foi defendida pelas poucas mulheres do Parlamento (ultra-conservadoras).

De acordo com a nova lei, se o marido bate na mulher, mas não o suficiente para hospitalizá-la – e se essa for a primeira agressão dele -, ele não será detido pelo crime. Apenas terá de pagar uma multa e eventualmente passar alguns dias na prisão, sem que o caso vire um processo a ponto de condená-lo.

A mudança veio com o argumento de "proteger a família de alguma interferência externa". "Para nós, é extremamente importante proteger a família como instituição. Se não, é como se fossem três dormindo na cama do casal: você, sua esposa e uma instituição de direitos humanos", disse Olga Batalina, uma das autoras da medida.

Isso tudo em um país que mata 600 mulheres por ano por violência doméstica, segundo os dados oficiais das autoridades. Na Rússia, uma mulher é assassinada a cada 40 minutos.

Diante desse cenário, dá para entender por que as mulheres recebem um tratamento "diferenciado" no país, que acaba sendo intimidador para a maioria delas.

Não é que o Brasil seja muito diferente disso, mas por aqui as coisas evoluíram um pouco (ao menos na questão das leis) e as mulheres parecem ter mais voz.

Vídeo que torcedores brasileiros fizeram com russa também repercutiu mal – não é brincadeira, é assédio (Foto: Reprodução)

De qualquer forma, embarco para Moscou amanhã e viajo para Nizhny sozinha no sábado para ver Inglaterra e Panamá no dia 24. Não vou deixar de fazer algo que eu quero por esse machismo que tenta me intimidar. Mas é triste saber que eu tenho que tomar um milhão de cuidados a mais apenas porque sou mulher. Que eu tenho que me preocupar com a roupa que vou vestir para evitar os comentários indesejados e um possível toque que eu não quero. E que não posso sair na rua sozinha na hora que bem entender porque posso não voltar.

Tudo isso apenas porque nasci mulher e essas preocupações a mais "vieram no pacote". É triste viver num mundo assim, mas o melhor que podemos fazer para mudá-lo é enfrentá-lo. Com os cuidados necessários, não deixarei de viajar, nem de ir ao jogo, nem de me divertir. Não vou ficar em casa, nem na cozinha, nem onde quiserem me colocar. O nosso lugar é a gente que escolhe.

Boa Copa pra nós!

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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