Topo

Dibradoras

O impossível é temporário: da periferia de São Paulo ao troféu em Barcelona

Renata Mendonça

11/05/2018 09h08

Por Roberta Nina, de Barcelona. 

Créditos fotográficos: Divulgação e Roberta Nina/dibradoras 

 

Quando nasce uma menina que ama a bola, a rua é o primeiro território a ser conquistado. Na maioria das vezes é preciso se safar de familiares – zagueiros implacáveis – que podem minar facilmente os sonhos de uma possível dibradora. E é assim mesmo, usando o mais popular jargão do futebol, que elas enfrentam a marcação cerrada em busca de espaço e aí, quando a rua passa a ser campo e os pés passam a calçar chuteiras, ninguém mais segura.

É no campo de futebol que se sonha, que se forma caráter, que entende o valor da derrota e da vitória e que se valoriza a força de uma equipe. E foi dentro das quatro linhas que seis meninas passaram de fase e conquistaram o direito de atravessar o oceano até desembarcar na Espanha. Tudo por conta de uma bola!

As brasileiras do Projeto em Campo foram até Barcelona para realizar um sonho e eu embarquei com elas nessa viagem. Para quem não se lembra, Jéssica, Isabela, Sabrina, Maria Eduarda, Nicolle e Isabelle foram campeãs do Campeonato de Futebol Gatorade 5v5 no final de março, aqui no Brasil (saiba mais aqui).

Com o troféu da etapa brasileira garantido, elas viajaram por mais de dez horas rumo ao Estádio Olímpico de Barcelona, um local que foi reconstruído especialmente para as Olimpíadas de 1992.

A primeira vez que o futebol feminino fez parte de um ciclo olímpico foi em 1996, nos Jogos de Atlanta, ou seja, o Estádio Lluís Companys, na Catalunha, não viu mulheres jogarem futebol em suas dependências. Mas, entre os dias 03 e 05 de maio, o local foi palco de uma história de união e garra das garotas brasileiras que levantaram o troféu de campeãs mundiais da primeira edição do futebol feminino no Gatorade 5v5. Pronto, com isso o Olímpico de Barcelona já tem as suas primeiras vencedoras da modalidade!

A preparação

As delegações masculinas e femininas do Brasil começaram as preparações para o torneio no La Masia, o centro de formação e treinamento dos futuros talentos do Barcelona. De lá, saíram craques como Pep Guardiola, Carles Puyol, Gerard Piqué, Andrés Iniesta, Xavi, e ele, Lionel Messi.

O pontapé inicial das meninas foi dado e, ao lado da equipe canadense, elas puderam treinar trocas de passes, roubadas de bola e marcação sob o comando de treinadores locais que passavam as instruções em espanhol e em inglês para as jogadoras. "Nina, traduz pra gente o que ele está falando?", elas me diziam, e o idioma foi a primeira barreira que precisou ser vencida pelas garotas.

A experiência vivida naqueles campos onde jogadores renomados puderam fazer o mesmo que elas, sem dúvida, agregou muito para cada uma. Conhecer as dependências do La Masia e o modo como cada jogador é avaliado e monitorado por uma comissão técnica e médica deu para elas (e para nós) a dimensão de como a organização do campeonato estava tratando os participantes.

Por ser a primeira vez em que o torneio realizou as etapas femininas, apenas 5 equipes participaram da edição: Brasil, México, Colômbia, Honduras e Canadá. Os planos para os próximos anos são maiores e, com certeza, envolverão mais equipes.

Os jogos e as dificuldades da primeira fase

Os atletas entraram no Estádio Olímpico ao som emocionante da música tema da Champions League, um dos torneios mais importantes do cenário mundial do futebol. Depois do desfile e das honras, chegou a hora de se preparar para os jogos e conhecer as equipes participantes.

A troca entre eles foi imediata e é curioso e emocionante ver como o amor pelo futebol encurta as distâncias entre cada pedaço de chão. Todos se entendiam, mesmo não falando a mesma língua e a integração entre os times aconteceu naturalmente.

As brasileiras começaram o Gatorade 5v5 goleando as primeiras adversárias. Aplicaram 4×0 nas mexicanas e 4×1 nas Hondurenhas, mas nem tudo foi fácil. A goleira Jéssica (também conhecida como Miracatu) que já havia feito milagres debaixo das traves no torneio brasileiro, saiu contundida logo no primeiro jogo do dia. O tornozelo inchou e ela desfalcou o time nos demais confrontos.

No dia seguinte, as brasileiras enfrentaram equipes mais competitivas. Começaram perdendo para o Canadá por 2×1. Saíram na frente do placar, mas sofreram a virada e a goleira machucada se lamentava do lado de fora. Isabela precisou ir para o gol e Nicole, a capitã da equipe, sentia fisgadas na virilha.

Para o jogo seguinte, elas não poderiam perder para a Colômbia, mas encontraram uma equipe bem postada e forte na marcação. Sabrina pediu para jogar no gol desta vez. Começaram perdendo por 1×0 e encontraram muitas dificuldades na partida. Nicolle não estava se sentindo bem e, após um encontrão com a adversária, caiu de bruços no gramado e permaneceu assim por muito tempo. Cerca de 5 minutos depois, a jogadora foi até a beira do gramado e vomitou muito (coisa comum de se acontecer em Barcelona, Messi que o diga). As equipes médicas foram acionadas e o time, que já estava desfalcado, jogou grande parte do tempo com três jogadoras na linha e a goleira improvisada no gol.

Os médicos orientaram Nicolle a sair do jogo, mas ela se negou. Se recuperou como pode, ajeitou a camisa, limpou o rosto e voltou a campo. Minutos depois, veio o empate. Explosão de euforia, gol da superação. O jogo terminou empatado e as meninas ficaram visivelmente abatidas. As colombianas cumprimentaram as brasileiras e presentearam, cada uma, com uma pulseirinha com as cores de seu país. As brasileiras ficaram preocupadas com as contusões e sabiam que a semifinal e a final não seriam fáceis de encarar no sábado.

A semifinal

O grande dia chegou e o sábado estava bem chuvoso. Me deparei com Jéssica pulando num pé só ou amparada por muletas, e vestida com seu uniforme de goleira. "O que você está fazendo?", perguntei. Ela me respondeu: "Vou jogar. Eu preciso ajudar o time."

As meninas do Brasil sabiam que não seria fácil vencer as colombianas e assim foi. Soraia Santos, a treinadora da equipe feminina passou as instruções para as meninas e cravou: "Agora só depende de vocês!"

Pelo placar de 3×0, vocês podem achar que a partida foi fácil, mas não foi. Jéssica, a goleira contundida, precisou se esforçar para fechar o gol e o placar demorou para sair do zero. A classificação para a final foi muito comemorada, mas ainda era preciso derrotar o time aparentemente favorito: a seleção canadense.

A visita inesperada

Pausa no relato da competição para registrar a presença da torcedora mais ilustre que o time brasileiro recebeu no torneio. Andressa Alves, atacante do Barcelona e da seleção brasileira, apareceu por lá e acompanhou a semifinal na beira do gramado, torcendo muito pelas meninas.

Depois do jogo contra as colombianas, a atacante bateu um papo com as jogadoras de todas as equipes femininas e contou um pouco de sua trajetória para as participantes. Foi especial e muito significativo para cada garota contar com um exemplo feminino que as incentivou a seguir atrás de seus sonhos e a acreditarem que toda mulher pode fazer aquilo que quiser.

A foto para registrar o encontro não poderia ser mais descontraída e Andressa fez questão de reforçar sua torcida. "É pra meter gol nas canadenses, hein?!" E foi com esse conselho que as brasileiras seguiram para o confronto final.

A finalíssima

Para contextualizar, a seleção canadense profissional é fortíssima e conta com muito apoio da torcida de seu país. O futebol feminino por lá é muito incentivado e elas foram medalhistas de bronze na última edição dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, em 2016. A nossa seleção feminina foi derrotada em casa por elas e eu, que estava lá no estádio neste jogo, fiquei triste demais com o resultado final.

Por dentro, eu tentava me acalmar e buscava a razão como saída para não sofrer com uma possível derrota. As canadenses jogam direitinho, tem controle de bola, trocam bons passes, se posicionam bem. O Brasil precisaria se esforçar muito para segurá-las, mas as meninas entraram em campo sem pensar em favoritismo nenhum.

Com três minutos de jogo, placar aberto. 1×0 Brasil com gol da Isabelle (ou Bahia, como é chamada) após um belo passe de chaleira da Nicolle. Com a vantagem, as meninas ficaram mais soltas e bem alertas. Jéssica fez defesas importantes, inclusive com o pé machucado e na zaga, Isabela e Sabrina seguraram tudo! Carrinho, marcação pesada e bola pro mato que o jogo era de campeonato.

A torcida estava presente. Barcelona virou Brasil, minhas pernas começaram a tremer, o vídeo em que gravava o jogo estava totalmente fora do normal e o tempo passava devagar.

Sem espaço, sem chance e visivelmente abaladas, as canadenses perderam o título para as brasileiras que seguraram o placar e, claro, fizeram aquela firula quando foi preciso. O campo foi invadido por toda a delegação brasileira, a goleira Jéssica tentou correr para comemorar, mas caiu no chão para chorar, os abraços e sorrisos apareceram e eu chorei, tremi e me senti a pessoa mais abençoada por ter acompanhado toda essa conquista de perto.

O hino nacional tocou, a capitã levantou o troféu e, na hora da foto, um banho de Gatorade deu à conquista o mesmo valor dos grandes títulos dos times profissionais.

Eu, que vi tudo acontecer no Brasil e na Espanha, me juntei a elas e pedi aquela foto histórica ao lado do time para guardar de recordação. "Levanta o troféu aí, Nina", me deu a permissão a capitã Nicolle e foi ali que eu entendi que na terra de grandes ídolos do esporte e do futebol que por muitos anos foi o mais envolvente do mundo, as minhas heroínas são mulheres!

Jéssica, Sabrina, Isabela, Nicolle, Duda, Isabelle e Soraia: vocês nem imaginam o quanto sou fã de cada uma de vocês. Obrigada por cada sorriso compartilhado e por cada gol marcado. VOCÊS SÃO CAMPEÃS!

El Clássico

As meninas do Projeto Em Campo – que nasceu em 2016 de uma parceria da USP-Leste, do PRODHE (Programa de Desenvolvimento Humano pelo Esporte) e do colégio particular Santa Cruz – foram campeãs da 1ª Edição Feminina do Torneio 5v5 da Gatorade e além do troféu conquistado com muita emoção, as jogadoras iriam assistir ao clássico entre Barcelona x Real Madrid no Camp Nou, no dia seguinte ao título.

Não bastava acompanhar in loco o último clássico da carreira de Iniesta, nem ver os maiores jogadores do mundo em cena (Messi, Suárez e Cristiano Ronaldo). As campeãs femininas e os campeões masculinos (a equipe do Panamá) foram ao estádio dentro do ônibus do Barcelona, o mesmo modelo usado pelos jogadores.

Ao passar pelas ruas da cidade catalã, a multidão de torcedores acenava e aplaudia o ônibus que avançava pelo caminho. Uma reverência clássica aos campeões que estavam lá dentro. "Muy gracias", dizia Jéssica, "Eitaaaaa", exclamava Sabrina e as demais mandavam beijos e tchauzinhos para "os fãs" que conquistaram por um dia.

O clássico mais famoso do mundo terminou 2×2, mas a experiência que cada uma delas provou valerá uma vida de ensinamentos. Começando pelo idioma, pela noção de que o mundo é grande, de que elas precisam se preparar para todas as situações, de que a amizade é coisa mais bonita que existe, que perder dói, mas é a derrota que te prepara para um grande triunfo e, claro, que a bola é deve ser instrumento de trabalho ou de diversão para qualquer gênero. Como elas costumam dizer: "o impossível é temporário e merecidamente nada é por acaso".

Roberta Nina viajou a Barcelona e participou do evento a convite da Gatorade Brasil.

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

Dibradoras