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As mulheres que buscam desbravar o universo da tática no futebol

Roberta Nina

17/04/2019 04h00

Michele no curso Licença A, da CBF, ao lado de Odair Hellmann (Foto: Laura Zago/CBF)

Ainda são raras as mulheres que trabalham com futebol fora dos gramados. Mas nos últimos anos, tem aumentado a procura feminina por uma capacitação nessa área.

Michele Kanitz tem 28 anos e é uma das mulheres que sempre soube que iria trabalhar com futebol fora de campo e foi buscar isso desde cedo. Já atuou como treinadora da equipe feminina da Ferroviária, e como analista de desempenho do time feminino do Corinthians e do Guarani, como contratada do técnico Osmar Loss.

A jovem Camila Aveiro, de apenas 24 anos, também demonstra grande interesse por essa área e há cerca de dois anos usa as redes sociais para divulgar suas análises de esquemas táticos do futebol masculino e feminino.

Além do gosto pelo futebol, as duas têm em comum a busca incessante por uma preparação adequada para poderem atuar na área.

Jogar e observar 

Michele sempre gostou de futebol, cresceu em uma família que tinha paixão pelo esporte. Jogou futsal por algum tempo, mas queria mesmo era trabalhar fora de campo. "Fiz vestibular para Medicina e passei, mas falei para minha mãe que não queria isso. Na época, decidi que iria fazer Educação Física e depois tentar partir para fisioterapia e, ainda assim, percebi que estaria muito longe da realidade do futebol que eu tanto amava", revelou ao podcast das dibradoras pela Rádio Central3.

Michele também é instrutora de análise de desempenho da Conmebol (Foto: Divulgação)

E foi com o intuito de se especializar especificamente no futebol que Michele começou a fazer todos os tipos de cursos possíveis e participou de um grande números de Congressos. No meio da graduação, em 2015, ela já estava cursando a Licença C da CBF. "No ano seguinte eu fiz a Licença B e no ano posterior fiz parte de uma das primeiras turmas a fazer o curso de Análise de Desempenho também da CBF", contou.

A paixão de Camila também começou na infância, já que morava em frente a uma pracinha que tinha um campinho de areia. "As brincadeiras do meu irmão sempre me atraíam mais. Minha avó tentou fazer com que eu fizesse ballet, karatê, até cantar, menos jogar bola. Ela me dava banho às três da tarde para evitar que eu saísse pra jogar bola na pracinha", contou às dibradoras.

Camila queria ser jogadora. Morando em Pernambuco, passou pela escolinha do Sport e participou de algumas peneiras com 15 anos.

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"É impressionante como sabemos pouco sobre o jogo que jogamos nossa vida toda" Vitor Frade.

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"Na época do vestibular ficava pensando se deveria estudar ou tentar jogar bola. Mas na minha família, somente uma prima, minha mãe e meu irmão chegaram a concluir os estudos. A gente dá muito valor. Em 2012, eu passei em todas as Universidades em que prestei e sempre tive certeza de que queria fazer Educação Física".

Além da Faculdade, Camila participou de diversos Congressos e fez outros tantos cursos pela Universidade do Futebol, o primeiro deles foi sobre "Tática no Futebol", aos 21 anos. "Descobri a Universidade do Futebol na internet e em um dos cursos que me inscrevi, entrei num programa de bolsa com 80% de desconto. Foi o Programa de Capacitação para Análise de Desempenho, divididos em sete cursos, à distância"

As experiências

Antes do Guarani, Michele já havia trabalhado com futebol masculino no Santa Cruz-RS, onde auxiliou na escolinha de formação de atletas e foi analista de desempenho e auxiliar-técnica do time principal.

Outra experiência que Michele considera marcante foi ter comandado a equipe feminina da Ferroviária entre o final de 2016 e meados de 2017.  "Tinha 24 anos quando assumi e as atletas abraçaram a ideia comigo. O trabalho foi bom, entre erros e acertos, porque era a minha primeira experiência", contou.

Michele treinou a Ferroviária com 24 anos (Foto: Associação Ferroviária de Esportes)

Camila começou sua trajetória treinando a equipe de futsal feminino na UPE, a Universidade Estadual de Pernambuco onde estudava. Mas com muito boca-a-boca, a garota foi mostrando seu trabalho para profissionais do Náutico, Sport, do Grêmio e pela internet, foi postando as análises em seu Twitter e em sites especializados em futebol (o dibradoras foi um deles, inclusive!).

E foi na cara de pau que Camila se jogou em sua maior aventura recentemente. Juntou dinheiro trabalhando em seis empregos e fez um pedido para estagiar na Ferroviária de Araraquara. Recebeu o sim do clube, avisou a família e ficou por 15 dias no interior de São Paulo.

"A Tatiele (Silveira, treinadora da Ferroviária) tem uma linguagem que se aproxima do que eu via na teoria, ela tem um modelo de jogo que se aproxima do que eu gosto e foi muito solícita, abriu as portas, me mostrou seu planejamento e me deu a oportunidade de produzir relatório de treino".

De Araraquara, Camila partiu para Santos com a ajuda da ex-jogadora Rosana. Ela queria muito ter a experiência de ver um treino das Sereias da Vila comandado por Emily Lima e, sem nada acertado, chegou à Baixada. "Fiquei duas semanas com Emily, acompanhando os treinos, contei minha história e fiz muitas perguntas pra ela e toda comissão. Mostrei minhas análises e eles me elogiaram", contou, orgulhosa.

O trabalho do analista de desempenho

Depois de se desligar da Ferroviária, por pouco mais de um ano Michele trabalhou como analista de desempenho do time feminino do Corinthians – quando ainda havia  a parceria com o Audax-SP. Chegou às vésperas da Libertadores de 2017 e foi campeã brasileira junto da equipe do Parque São Jorge em 2018.

Contratada pelo treinador Osmar Loss no final do ano passado – visando a preparação para a temporada atual -, Michele começou a desempenhar a função de analista de desempenho na equipe masculina do Guarani. Basicamente, cabia a ela analisar se o time jogaria de acordo com o modelo proposto pelo treinador.

"Ele tinha me passado qual era o modelo de jogo dele, como iria atuar e quais as principais características do time. Eu ia em todos os jogos do Paulistão, acompanhava os treinos e a preparação para a competição. Por exemplo, o Loss é um treinador que gosta de pressionar após perder a bola, então isso tem que funcionar não só para um jogo, mas sim para todos, independentemente do adversário, essa característica tem que acontecer. E eu observava esses detalhes", revelou Kanitz.

(Foto: Divulgação)

Como não era contratada do clube, Michele não tinha contato direto com os jogadores do elenco, mas afirmou que carrega certo distanciamento. "Eu sempre tive uma preocupação desde que comecei a trabalhar com futebol sobre como as pessoas entendem o processo da mulher dentro das instituições e de qualquer área do futebol. Faço meu trabalho, entrego para o profissional responsável. Como analista, não preciso estar à frente de nada. Sou uma profissional que está atrás das quatro linhas e do treinador", disse.

Em busca de espaço

Mesmo no futebol feminino, ainda é raro ver mulheres ocupando postos de treinadoras ou fazendo parte de comissões técnicas. Entre os 52 times das Séries A1 e A2 do Brasileiro, são sete mulheres no comando apenas. Tanto Michele quanto Camila apontam uma dificuldade em comum: a falta de oportunidade e o preconceito.

"Para mulheres, há um preconceito muito maior. Se eu não trabalhar como analista, onde posso me encaixar? Dentro de uma comissão técnica no Brasil é praticamente impossível. No futebol, as pessoas não olham para você como profissional, elas olham para você como mulher. Mesmo que tenha experiência", pontuou Michele.

Quando questionada em qual área prefere atuar, Michele ainda se diz dividida, mas reconhece que o espaço no futebol feminino é muito maior. "Tenho minhas dúvidas ainda, mas tudo que vier de bagagem vai me ajudar a decidir qual caminho a seguir. Gosto muito das duas áreas e também do futebol masculino e do feminino, mas com relação à trabalho para as mulheres, o feminino ainda abre mais portas", disse.

Camila sente que precisa ter mais experiência e aguarda uma chance para aprender mais. "Sei que como analista é mais fácil começar, sigo fazendo minhas análises, mas quero mesmo é ser técnica", finalizou.

Ouça o podcast com Michele Kanitz pela Central3:

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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