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Por que esposa do jogador na França não denunciou agressões antes?

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26/03/2018 14h30

 

A capa do jornal L'Equipe desta segunda-feira traz uma notícia emblemática: uma mulher denunciando um jogador de futebol que atua na Ligue 1 (principal divisão do Campeonato Francês) por agressões físicas e até espancamento.

Nenhum nome é revelado na matéria. A informação que se dá é apenas que o autor do crime joga também por uma seleção africana. "Quando eu o conheci, ele era adorável. Mas assim que nós fomos morar juntos, eu vi que ele não era muito estável e que era realmente violento. Ele começou a me bater, é difícil de acreditar, mas foi assim", relatou ela.

Foram anos convivendo com a violência. Até o momento em que os golpes foram tão fortes, que ela temeu pela própria vida. E agora denunciou o caso ao jornal.

Imediatamente, vieram os inúmeros comentários questionando a veracidade dos fatos: se um namorado te bate, por que você continua com ele? Por que não procura ajuda? E a mais comum de todas: se isso estava mesmo acontecendo há anos, por que não denunciou antes?

Tudo isso parece muito simples e básico – mas não é. Isso porque a gente tem o costume de comparar um crime de violência contra a mulher com qualquer outro crime. Então se, por exemplo, uma pessoa te aborda na rua e rouba seu celular, sua atitude mais óbvia é ir à delegacia e fazer um boletim de ocorrência, descrever o ladrão, buscar puni-lo afinal. E se você sofre uma agressão do seu marido, a reação mais óbvia, vão pensar, é denunciá-lo na delegacia, certo? A questão é que nem tudo é tão simples quanto deveria ser.

Primeiro, precisamos levar em consideração o autor do crime e o contexto em que esse crime acontece. Num assalto, você (normalmente) não conhece o ladrão, não se importa com ele e quer mesmo que ele vá para a cadeia. No caso de uma violência doméstica, o autor dela na grande maioria das vezes é um conhecido – ou melhor, é o seu parceiro, namorado, marido ou até mesmo o pai dos seus filhos (ou seu próprio pai).

Segundo uma pesquisa do DataFolha de 2017, 61% dos casos de agressão física contra mulheres têm como autores homens conhecidos das vítimas. Então denunciar um agressor nessa situação é denunciar um familiar, uma pessoa que você ama, que fez parte por muito tempo da sua vida, que construiu laços, que gerou seus filhos. Não dá para comparar isso a um caso de crime qualquer.

"Ah, mas o cara te bateu". Sim, aí entra o contexto da sociedade. Por muito tempo, foi muito "normal" maridos baterem em suas esposas. Era aceito, era incentivado até (um tapinha não dói, não é mesmo?). Tão naturalizado que foi tema de canções de músicos dos mais consagrados do Brasil ("Mulher indigesta, que merece um tijolo na testa", cantava Noel Rosa. "Se te agarro com outro, te mato! Te mando algumas flores e depois escapo", eram os versos de Sidney Magal, nos anos 1980.)

Diante disso, muitas mulheres demoram a denunciar porque sempre acham que aquilo "foi só um incidente isolado", porque "logo ele se arrepende e pede desculpas", porque "ele sempre foi tão amoroso, isso não vai acontecer de novo". E acontece. De novo, e de novo, e de novo.

Mas aí entram outros aspectos: um deles é o financeiro. Como "Miriam", nome fictício usado para identificar a mulher que denunciou o jogador no L'Equipe, muitas mulheres acabam parando de trabalhar porque seus maridos não deixam. É uma estratégia deles de mantê-las dependentes. Aí pesa também a sobrevivência: como você vai denunciá-lo se não tem onde morar, nem o que comer, nem como sustentar os filhos sem ele?

Agora entre todos os aspectos que afastam as vítimas de violência doméstica da delegacia, talvez o mais importante seja esse: o descrédito dado à sua palavra diante da do agressor.

Quando uma mulher denuncia uma violência, a palavra dela é sempre colocada à prova. Mas onde você estava quando aconteceu? Que roupa estava usando? Tem certeza de que ele realmente te bateu? Não foi só uma discussão mais acalorada?

Todas essas perguntas não foram inventadas por mim – foram ouvidas na delegacia por milhares de mulheres que tentaram denunciar seus agressores. Uma vez, ouvi o depoimento de uma conhecida que conseguiu chamar a polícia imediatamente após a agressão do namorado.

Ela conseguiu prendê-lo em um quarto e esperou os agentes chegarem para levá-lo para a prisão. Os hematomas estavam à mostra, e ela estava grávida. Aí o policial chegou e a primeira coisa que fez foi cumprimentar o autor do crime. "Olá, tudo bem?" – e estendeu a mão para ele. Agora imagine se você chama a polícia para conter o roubo do seu carro, e o agente chega e cumprimenta o assaltante em vez de coibir seu crime?

Depois disso, os dois foram levados para a delegacia na mesma viatura – lembrando que recentemente houve um caso desses em que o homem esfaqueou a mulher dentro do carro da polícia justamente porque eles foram levados lado a lado no veículo. E no local, enquanto a vítima descrevia tudo o que já havia acontecido, as inúmeras vezes em que havia sido agredida pelo companheiro, o delegado dizia: "Mas você tem certeza de que irá denunciá-lo? Isso vai acabar com a vida dele. Esses hematomas aí não são nada. Foi só uma discussão, nao foi? Você vai arruinar a vida dele por causa disso?"

A vítima, então, desistiu de fazer a denúncia – e é muito simples entender por quê.

Agora imaginem no caso do futebol, em que os autores desse tipo de crime são ídolos de multidões. São homens adorados pelos torcedores, ricos, poderosos. Quem levaria em consideração a denúncia de uma mulher contra um cara desses? Quantas vezes ela teria de provar que não estava mentindo?

Aconteceu com a vítima do estupro envolvendo Robinho, por exemplo, em que mesmo após a condenação dele na Itália, seguimos ouvindo diversos questionamentos sobre a veracidade do depoimento da vítima. No caso denunciado nesta segunda-feira pelo L'Equipe não foi diferente: muitos já vieram dizer que ela está querendo "ganhar fama" e que não revelou o nome do jogador justamente porque está mentindo.

Os casos se repetem em todos os esportes, mas acabam ficando ocultos por causa dessa "proteção" que se dá aos jogadores. No futebol americano, por exemplo, em dois anos, foram 18 casos de violência contra a mulher que vieram à tona – pouquíssimos que acabaram com punição. A NFL decidiu suspender um jogador envolvido nesse tipo de denúncia por seis jogos, mas muitas vezes atletas mais consagrados e que são mais importantes para suas equipes acabam escapando de qualquer penalidade.

No futebol brasileiro, vira e mexe pipocam alguns casos, mas poucos ganham repercussão. Desde os tempos de Garrincha, que agredia frequentemente a esposa Elza Soares, passando pelo caso mais grave do goleiro Bruno, condenado por assassinar a ex-mulher – e que chegou a ser contratado no ano passado pelo Boa Esporte mesmo com um histórico desses -, terminando nas denúncias mais recentes como o de Juninho, do Sport, que seguiu sendo escalado mesmo após a ex-namorada revelar ter sido vítima de agressões provocadas por ele.

Poderíamos citar aqui ainda o caso de Kleber Gladiador, acusado pela esposa em 2012 por um soco desferido nela, Marcelinho Paraíba, denunciado na Lei Maria da Penha no mesmo ano, Jobson, que em 2013 foi acusado de agressão e em 2016 foi preso por estupro, entre tantos outros.

Casos que acabaram ocultos em meio a tantas notícias e que pouca gente se lembra. O que aconteceu com esses jogadores? Seguiram suas carreiras sofrendo poucas consequências por isso. Talvez o que mais tenha "sofrido" alguma coisa tenha sido Robinho, condenado por estupro na Itália no ano passado. Neste ano, ele não conseguiu fechar com nenhum clube no Brasil – muitos times daqui  levaram em consideração a "repercussão negativa" que a contratação dele poderia ter. Resultado? O atacante das pedaladas acabou indo jogar na Turquia.

Levando tudo isso em consideração, dá para entender por que as mulheres demoram a denunciar os casos de violência doméstica – ou não denunciam nunca. No Brasil, segundo pesquisa do DataFolha, 1 em cada 3 mulheres acima de 16 anos já foi espancada, ameaçada, ou perseguida. Em 2016, 503 delas eram vítimas de agressão física a cada HORA. De todas essas, quantas foram à delegacia da mulher? Apenas 11%.

Imaginem então se o agressor a ser denunciado for um jogador de futebol, ídolo de milhares, cheio de fama e dinheiro? Quem iria acreditar nessa mulher? Quem acreditou na vítima de Robinho? E quem está acreditando agora na vítima do jogador na França? Enquanto o futebol (e seus torcedores) continuarem silenciando esses crimes, a violência continuará sendo a regra – e a denúncia por parte das mulheres será sempre a exceção.

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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