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Fanática e sem papas na língua, torcedora de 90 anos levou time a gerações

Renata Mendonça

08/09/2018 11h15

Foto: Arquivo Pessoal

Qualquer desavisado que sente ao lado de Dona Vicentina no sofá num domingo à tarde em frente à televisão pode se surpreender com o que vai ouvir ao longo de duas horas de muito nervosismo e apreensão. Simpática e muito extrovertida, a senhora de 90 anos se transforma quando o juiz apita o início de um jogo do São Paulo.

"Vai, seus filhos da p***! O que aconteceu com vocês hoje? Acordaram muito cedo? Tá muito frio? Estão demorando muito pra chutar. Chuta logo, seu corno!", grita ela, enquanto assiste à mais um jogo do Campeonato Brasileiro. E segue assim por ininterruptos 90 minutos – com exceção do momento em que há um gol tricolor. O alvo preferido costuma ser o árbitro. "Ultimamente o juiz tem roubado muito contra o São Paulo", desabafa ela no encontro com as ~dibradoras – não sem antes desferir alguns palavrões também contra ele.

"Olha, quando eu vejo o São Paulo jogar, eu me transformo. Eu não sei da onde vem tanta força para assistir e para xingar, principalmente quando o juiz começa a roubar. Meu coração está muito bom, porque, olha, se eu tivesse no Morumbi, eu não aguentaria, acho que pularia lá para falar com o juiz. Até peço desculpas pelas besteiras que eu falo. Mas enquanto estiver viva, eu vou fazer isso", diz ela aos risos.

A família já está acostumada. Dona Vicentina é assim desde sempre. Marcus Mesquita, de 33 anos, é um dos netos que "aprendeu a ser fanático" com a avó. Na infância, era com ela que ele conversava sobre as expectativas do São Paulo no campeonato, os clássicos que estavam por vir, os jogadores que precisavam melhorar, etc. Um convívio que eles têm até hoje, mesmo morando em cidades diferentes, porque toda rodada é a mesma coisa: são inúmeros áudios trocados no WhatsApp reclamando do juiz, comemorando as vitórias ou lamentando as derrotas.

"Minha vó sempre morou comigo. Como meus pais trabalhavam fora, quem acabava participando da minha rotina e de tudo que eu consumia era ela. E com ela era sempre normal comentar o jogo que rolou no dia anterior, assistir aos programas de esporte durante a tarde, xingar o juiz, rir dos rivais nas vitórias ou esbravejar nas derrotas. Acho que ela desde sempre tornou o futebol um assunto muito orgânico e natural nas nossas casas", contou Marcus.

Mas ele não é o único que "herdou" o fanatismo da avó na família. Hoje, já são pelo menos quatro gerações de filhos, netos e bisnetos são-paulinos por causa dela. Tanto que as comemorações de aniversário de Dona Vicentina têm sempre o hino do clube cantado no lugar do "parabéns".

"No aniversário de 90 anos dela no ano passado, a gente fez uma festa como sempre, estava toda a família aqui, e aí tem um ou outro que é corintiano ou palmeirense. Mas até eles cantaram o hino na hora. Vieram falar que ficaram tão emocionados, que acabou saindo", disse Zeni, que é filha de Dona Vicentina e, como não poderia deixar de ser, também torcedora do São Paulo.

Mas são raros os dissidentes da família – porque como boa fanática que é, Dona Vicentina não deixa passar um. Assim que nasce mais um neto ou neta, o primeiro presente é sempre uma roupinha com as cores tricolores. "Tem um que nasceu agora, faz dois meses. A primeira roupa que ele vestiu já foi a do São Paulo", brincou ela.

Paixão

Tudo começou em 1947, quando Vicentina tinha apenas 20 anos e se mudou de Ipuaçu, no Paraná, para a capital. Ali chegando, ela "descobriu" o São Paulo, que ainda era "recém-nascido" nessa época – o clube foi fundado em 1930. Mas logo se apaixonou pelas cores e começou a torcer junto com o marido, contrariando o pai corintiano.

Dona Vicentina nasceu em 1927, uma época em que futebol era algo exclusivamente masculino. Mas isso nunca a intimidou – muito pelo contrário. Ela sempre frequentou o Morumbi e garante que nunca ouviu desaforos por lá: "Ninguém  é louco de dizer alguma coisa. Até porque, se disser, eu tenho resposta também". Mulher forte, cheia de personalidade, ela sempre foi exemplo pra família, onde o futebol se espalhou sem preconceito – meninas da família eram tão incentivadas quanto os meninos a gostarem do jogo, da arquibancada – e do São Paulo, claro.

Dona Vicentina e o neto Marcus (Foto: Arquivo Pessoal)

"Ela sempre foi exemplo e referência. Até quando o assunto é a relação de mulheres com futebol, acho que ela  contribuiu de uma forma muito saudável pra minha família toda", contou o neto Marcus. "O fato de ter ela, desde o início das nossas vidas, do lado torcendo, vibrando e falando sobre isso, fez com que fosse muito normal pra todos nós ver o futebol como um assunto também pras mulheres. E praticamente todas as mulheres da minha família gostam e são torcedoras, por causa dela."

A relação de Dona Vicentina com o São Paulo é tão forte na família que, no seu aniversário de 80 anos, o presente dos filhos veio com uma surpresa futebolística: eles gravaram um vídeo com vários jogadores do São Paulo e mostraram para ela na festa. Rogério Ceni, Hernanes e Richarlison foram alguns dos que mandaram um recado à dona Vicentina naquela ocasião. "Eles fizeram tudo de surpresa. Foi uma emoção só, ouvir os jogadores me mandando parabéns. Queria dar um abraço em cada um deles", disse ela.

Aniversário de 90 anos dela comemorado em 2017 teve bolo do São Paulo (Foto: Arquivo Pessoal)

Entre os jogos que mais marcaram sua memória estão a final da Libertadores de 1992, a primeira conquistada pelo São Paulo, e o jogo contra o Corinthians em que Rogério Ceni fez seu centésimo gol em cima do maior rival. Mas o neto Marcus também se recorda da final do Campeonato Paulista de 1998.

"Foi uma final com todos os ingredientes que tem muita relação com ela. Eu lembro que esse jogo caiu exatamente no dia das mães, que é um feriado que toda a família se reúne pra ficar junto dela, e geralmente todos com a camisa do SPFC. Além da data, foi o jogo do retorno do Raí, provavelmente a pessoa que ela mais ama no mundo. E tudo isso contra o Corinthians, que é o rival que ela mais gosta de ganhar e tirar onda", descreveu.

Mas independente do jogo, da vitória ou da derrota, o que é certo é que Marcus, dona Vicentina e a família que ela construiu estarão sempre juntos – para falar de futebol, xingar o juiz e celebrar a alegria de viver que ela continua tendo aos 90 anos de idade. 

 

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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