Pela 1ª vez, Copa terá narração feminina: o que vem depois?
Pela primeira vez na história, a Copa do Mundo terá narração feminina no Brasil. O torneio que rege nossa paixão futebolística existe desde 1930, mas desde então, nem em radio, nem em televisão, houve mulheres com a oportunidade de narrar um jogo do Mundial.
Essa história pode começar a mudar em 2018. A Fox Sports terá um canal específico com a presença feminina em comentários e em narrações e transmitirá os jogos da seleção brasileira com vozes de mulheres no comando. Isabelly Morais, Renata Silveira e Manuela Avena foram as narradoras selecionadas no processo seletivo "Narra Quem Sabe", que escolheu três entre as seis candidatas previamente selecionadas para participar de dois meses de treinamentos e testes para narrar jogos da Copa.
Será uma evolução e tanto poder acompanhar jogos do Mundial com uma voz feminina narrando. Mas o que virá depois disso? Para quem já foi pioneira antes nesse posto, a conquista é louvável, mas é preciso dar continuidade nisso para garantir uma mudança real no cenário.
"Se você considerar que os homens narram há 90 anos e até o momento presente nós não tivemos nenhuma mulher fazendo uma Copa in loco como narradora. Se não tivemos ainda, imagina quanto atraso existe nisso", disse Luciana Mariano, a primeira mulher a narrar futebol na televisão ainda em 1997 – e que agora foi contratada pela ESPN para retomar essa carreira.
"Sobre ter pela primeira vez mulheres narrando a Copa, eu acho muito legal, é um espaço fantástico, toda e qualquer iniciativa que for tomada para abertura desse espaço é muito bacana. Mas nem tudo são flores. Estamos atrasados. No contexto todo, acho que essa história ja deveria ter amadurecido há muito mais tempo, no entanto a gente ainda está no berçário. A pergunta é simples: quantas narradoras temos hoje contratadas nas televisões brasileiras? Fazendo parte efetiva da equipe, não uma profissional que chega pra fazer um evento. As mulheres precisam estar nesse espaço o tempo todo", defende.
Como produtora, repórter e depois apresentadora, Luciana Mariano entrou no jornalismo esportivo na década de 1990 e, em 1997, teve pela primeira vez a oportunidade de narrar jogos de futebol na TV. Foi a voz da TV Pernambuco para a transmissão do Campeonato Pernambucano em 1999. Uma experiência que ela descreve como "inesquecível". No entanto, depois disso, sua carreira tomou outros rumos e ela não mais ocupou os microfones – ao menos não com a função de narradora. Até que neste ano, em março, foi chamada pela ESPN para narrar um jogo da Europa League, 19 anos depois de seu último trabalho narrando.
"Eu não fui lá só pra narrar um jogo, eu continuei fazendo parte daquela equipe e era isso que me ajudava a desempenhar bem o meu trabalho. Assim como os homens sabem o que sabem porque estão no dia a dia dos jogadores, dos clubes. Quando chega na Copa, ele sabe que o lateral joga em tal time da Europa, jogou tantas Copas, ele não precisa ler e assimilar toda aquela história em um mês, ele viveu tudo isso. O Galvão Bueno, por exemplo, está fazendo a 12a Copa dele. E em todas elas, ele esteve presente, conheceu cidades-sede…imagina o que isso não dá de repertório para esse profissional?", diz.
Por tudo isso, Luciana Mariano ressalta a importância de dar um espaço contínuo às mulheres na narração.
Em 2018, o Esporte Interativo fez o processo "A Narradora Lays", que deu a oportunidade de pela primeira vez uma mulher narrar a Champions League – foi Vivi Falconi, que narrou do Santiago Bernabéu a semifinal entre Real Madrid e Bayern de Munique. Mas ao menos por enquanto ainda não houve continuidade na inserção de mulheres como narradoras do canal. Existe a possibilidade de Vivi Falconi seguir por lá, mas nada oficialmente confirmado.
Na Fox, também não há definição oficial sobre a continuidade das narradoras após a Copa do Mundo, mas a princípio o plano da emissora é seguir com o projeto de inserir mulheres na narração.
E na ESPN, que também havia promovido a narração de Luciana Mariano em março sem planos de continuação, agora oficializou a contratação dela para o time de narradores do canal.
Grandes narradores se fazem com experiência profissional e, por isso, é essencial que as mulheres não sejam presenças pontuais em narrações isoladas, conforme destaca Luciana Mariano.
"Eu espero que a gente possa ter profissionais mulheres atuando na narração esportiva com regularidade. Eu senti essa dificuldade, passei muito tempo sem narrar, 19 anos, e não volta igual, volta muito atrás. Porque os caras fazem isso todo dia. Isso dá experiência, embocadura, ritmo de jogo. É como você pegar um jogador de futebol, ele vai treinar todo santo dia, vai jogar várias vezes por semana, ele ja sabe o que fazer. Mas se você pegar esse jogador e deixar ele sem jogar por 19 anos e botar ele de volta, ele vai se arrebentar, porque ele nao está fazendo regularmente", observou.
"É isso que vai nos dar experiência. As pessoas dizem: a voz feminina é ruim, a narração feminina é ruim, só que a gente não é capaz de avaliar isso ainda. Só vamos poder avaliar isso quando a gente tiver em pé de igualdade com os homens. Quando forem, por exemplo, 100 locutores no país, 50 mulheres, 50 homens, todos estão fazendo isso há 10 anos, aí a gente pode fazer um concurso e ver quem é melhor. O que faz um grande narrador, é a experiência profissional. Além da regularidade, do tempo de trabalho, da vivência, do ritmo, da embocadura, voz imponente, é a experiência".
A história da mulher na narração de futebol começou em 1971, com Zuleide Ranieri, na Rádio Mulher. Depois disso, tivemos novamente uma voz feminina apenas em 1997 com Luciana Mariano, a primeira na TV. E só agora mais recentemente temos tido novos casos de mulheres narrando.
Diante disso, até mesmo pela falta de referências femininas atuando na área, por muito tempo as mulheres ficaram alheias a essa profissão. Quando perguntadas o que queriam ser quando crescessem, nenhuma delas dizia: "narradora" – porque essa não parecia uma possibilidade real para elas.
Mas na medida em que narradorAs começam a ocupar esse espaço, elas abrem as portas para que as meninas possam sonhar com essa mesma profissão no futuro.
E é por isso que é importante a continuidade. Ainda é, sim, "estranho" ouvir mulheres narrando – porque é algo fora do comum, não estamos acostumados a isso. Só que quando uma emissora abraçar "de vez" a causa e colocar as mulheres para narrarem jogos com frequência, não só esse estranhamento vai começar a desaparecer, como a qualidade da narração delas também vai aumentar. Elas passarão a construir sua própria identidade – hoje nossas referências de narração ainda são todas masculinas e é difícil se descolar delas.
A ideia não é acabar com as narrações masculinas, mas apenas inserir a mulher também nesse espaço. Mostrar que o microfone pode ser deles, assim como pode ser delas também.
"A intenção aqui não é concorrer. É que a gente possa trabalhar sempre. E aí vai acontecer de forma natural que a gente (mulheres) seja chamada pra narrar em vários outros eventos esportivos, assim como os homens", conclui Luciana Mariano.
Que essa seja a primeira Copa de muitas narradas por mulheres. Que venha o primeiro Campeonato Brasileiro e a primeira Libertadores na voz delas também. E que em breve a presença delas na narração seja regra, em vez de apenas a exceção.
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