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Os motivos que ainda calam o abuso sexual no esporte

Renata Mendonça

01/05/2018 10h55

Foto: Reprodução TV Globo

Em 2016, às vésperas da Olimpíada, uma notícia chamou a atenção sobre a ginástica artística do Brasil: um técnico da seleção brasileira havia sido afastado por suspeita de abuso sexual contra um atleta menor de idade.

O fato em si já deveria ter sido grave o suficiente para pararmos um pouco de falar sobre preparação olímpica e falarmos um pouco mais sobre um tabu gigantesco no esporte brasileiro: o abuso sexual de meninos e meninas por técnicos, dirigentes e pessoas envolvidas nas modalidades. Mas não demos muita atenção para isso.

Dois anos depois, um escândalo veio à tona com denúncias de abuso envolvendo mais de 40 ginastas em apuração da repórter Joanna de Assis, no Fantástico. E descobrimos que não fomos só nós, da imprensa e do público em geral, que ignoramos o primeiro e único caso que havia afastado o treinador lá em 2016.

Técnicos que trabalhavam com atletas de Fernando de Carvalho Lopes, psicólogos do clube em que ele trabalhava e os próprios ginastas que conviviam com vítimas também preferiram não levar a sério o que chamavam de "boatos" que surgiam a respeito do comportamento do treinador. Preferiram fazer "piada" sobre isso – e aí está o perigo de tratar um problema como piada: as pessoas riem, e não buscam solução para ele.

"Tratar como piada traz o perigo de você silenciar a pessoa que está passando por aquilo, é como se fosse um bullying. Acho que isso se torna mais forte com meninos abusados, porque mexe com a masculinidade deles. 'Ah, deixa eu pegar, seu viadinho, não é homem, não?', esse tipo de coisa que faz parte das 'brincadeiras"', opinou às dibradoras Joanna Maranhão, nadadora brasileira que foi abusada por um técnico aos 9 anos de idade.

Joanna Maranhão foi abusada pelo técnico aos 9 anos de idade

"A questão do abuso sexual está diretamente ligada a essa falsa ideia de o gênero masculino se sobrepor ao feminino nessa relação de poder", completou.

Especialistas apontam que é mesmo mais difícil e raro ver meninos denunciando abusos porque há um estigma em torno deles a respeito de uma suposta homossexualidade ou mesmo de uma "fraqueza" que não é permitido aos meninos ter – tudo fruto do machismo que envolve nosso contexto social. "Homem não chora", é o que sempre se diz por aí.

"Outra questão que se coloca nesse tema é o fato de o esporte historicamente ser considerado um campo de representação masculina. A virilidade, a força, a velocidade, a determinação, isso desde o século 19 eram consideradas características exclusivamente masculinas. Então não cabe a uma pessoa que não se identifique com essa forma de se colocar no mundo. Para os meninos denunciarem um abuso, um assédio, a questão da própria virilidade é colocada em risco", afirmou Katia Rubio, pesquisadora da USP e autora de 24 livros sobre psicologia do esporte e estudos olímpicos.

Silêncio

Há outros motivos que fazem com que as vítimas de abuso sexual se calem, principalmente no esporte. Nesse contexto, o abusador é, em geral, alguém que exerce poder direto sobre a vítima na modalidade – um treinador, um dirigente, por exemplo. E, sendo assim, muitas vezes há ameaças de "acabar com a carreira" daquele atleta se ele disser alguma coisa. Está sempre implícito de alguma forma ali que denunciar algo sobre um abuso pode acabar com o sonho daquela criança de um dia disputar Jogos Olímpicos ou chegar ao topo no esporte.

"Na reportagem do Fantástico tem um psiquiatra que fala sobre a síndrome do silêncio e desse medo que você tem de verbalizar. E somatiza a isso o papel de mestre mesmo, o poder que o treinador de alto rendimento exerce sobre nós atletas", explicou Joanna Maranhão, que só conseguiu falar aos 21 anos sobre o abuso que ela sofreu aos 9.

"É uma série de fatores que colaboram para que a gente silencie. Aí vem tudo aquilo, o medo de parecer que está mentindo e pedirem prova, o tempo que tem para falar. Esse tanto de culpabilização da vítima é que faz com que a gente cale por muito tempo."

No caso da ginástica, por muito tempo as vítimas ouviam piadas sobre o tema – e mesmo quando uma delas denunciou o treinador, a história foi tratada como "boato".

"A gente já ouvia piada de treinadores. 'Ah, você não tá aguentando? E se eu apertar seu bumbum, você vai fazer? Você quer carinho?'. O mundo da ginástica não é um mundo muito grande. É um mundo pequeno. Provavelmente, a maioria dos treinadores sabia dessa situação. A maioria dos atletas sabia dessa situação", disse à reportagem da Globo o técnico Marcelo Araújo, que treinava em São Caetano com alguns atletas vindos do clube Mesc, de São Bernardo do Campo, onde Fernando abusava dos meninos.

Por tudo isso, Joanna Maranhão defende que se comece a levar mais a sério o que dizem as crianças – muitas vezes elas estão tentando comunicar um abuso de alguma forma. "Além do crime das cicatrizes que deixa nesses jovens, me incomoda muito a conivência da psicóloga que teve contato, do clube que também colocou panos quentes e outros técnicos que ouviram aquilo e não deram a devida importância", afirmou.

Foto: CBG

"Enquanto a gente não der ouvido ao que a criança fala, porque a criança fala de muitos jeitos, às vezes é uma mudança de temperamento que fala muita coisa. Então é necessário que a gente esteja aberto para ouvir crianças. Na época, não foi feito nada e é por isso que ele continuou cometendo esses crimes por todos esses anos."

'Modus operandi' do abuso no esporte

Apesar de ser um tema cheio de tabu, tanto para meninas, quanto para meninos, os abusos sexuais no meio esportivo acontecem com um "roteiro" traçado. Há uma forma de agir muito similar dos pedófilos, que se aproveitam do meio esportivo onde eles têm "acesso" ao corpo da criança – e também a confiança delas e dos pais – para cometerem o abuso.

"Há sempre uma maneira muito parecida de conquistar a confiança da criança. Eles fazem com que ela se sinta especial, ou talentosa, ou prodígio , e depois uma confiança dos pais dessa criança para que possa ficar com ela a sós e possa passar a impressão de que é treinamento. Foi assim comigo, foi assim com as outras meninas que sofreram com esse mesmo abusador", conta Joanna Maranhão.

"Ele era muito amigo da nossa família. Eu treinei com ele por dois anos, durante um ano e meio ele foi o melhor técnico do mundo. Nos últimos seis meses em que eu treinava com ele foi que os abusos aconteceram, então eu acredito muito que venha pela psicopatia de ter prazer na conquista da confiança. Aí você usa essa desculpa e esse poder, do tipo 'eu sei o caminho para que você atinja uma performance alta' e no meu caso a desculpa era encosta aí que eu preciso por a mão no seu maiô. Dos meninos era 'eu preciso ver o seu pênis'. É abominável, mas é assim que a coisa se dá."

O primeiro passo para combater esse problema é começar a falar abertamente sobre isso. A pesquisadora Katia Rubio diz que essa seria a melhor estratégia para enfraquecer os pedófilos.

"O abusador está numa situação de poder, ou de pseudopoder, e a forma de se combater isso é tirar esses casos da sombra, como aconteceu com os casos das ginastas americanas. O abusador sempre conta com a invisibilidade que o poder do esporte deu a ele", afirmou.

Para a nadadora Joanna Maranhão, é jogando luz e quebrando o silêncio desses casos que será possível evitar que eles continuem acontecendo no futuro.

"Tem que falar sobre isso, se esse silêncio não for quebrado, é propício pra eles (abusadores). Se você for criar um monstrinho, é um monstrinho que se alimenta de sombra e silêncio, aí quando você coloca luz e você começa a falar, esse monstrinho vai ficando acuado. Então o caminho que eu acredito é esse. quanto mais passos a gente der é melhor. E nunca vai ser suficiente, porque a gente não tem noção da proporção disso – é muito maior do que a gente pode imaginar", finalizou.

 

 

 

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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