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Formiga chega aos 42 com 'bodas de prata' na seleção e 7ª Olimpíada à vista

Renata Mendonça

03/03/2020 04h00

Foto: CBF

Era 1995, às vésperas da segunda edição oficial de uma Copa do Mundo feminina, um nome na lista de convocadas da seleção brasileira surpreendeu até mesmo os dirigentes da CBF na época: aos 16 anos, Miraildes Maciel Mota, hoje conhecida como Formiga, começava sua trajetória com a camisa verde-amarela.

Até dava para entender a desconfiança – mas só de quem nunca a tinha visto jogar. À primeira vista, Formiga parecia uma criança ainda, de tão magrela e franzina que era após uma infância cheia de dificuldades em Lobato, no subúrbio de Salvador. "É sério que essa menina joga?", foi o que pensou Marcia Tafarel, meio-campista já da seleção brasileira quando conheceu Formiga no Euroexport da Bahia em 1993. No minuto que a garota pegou na bola, Tafa entendeu que o tamanho ali definitivamente não interferia no talento.

"Ela tinha talento, habilidade, e uma visão de jogo já aos 14 anos de idade, só precisava ganhar maturidade em campo. E isso ela foi adquirindo com os anos. Eu a apelidei de Formiga Atômica, porque ela corria demais, era uma jogadora que tinha uma vitalidade incrível, mesmo sendo franzina", afirmou a ex-jogadora à reportagem.

O que aquela baiana arretada queria era uma coisa só: jogar bola. Só que não seriam poucos os obstáculos que enfrentaria em busca desse sonho. A começar pelo maior deles – o fato de ter nascido menina no país que se diz do futebol, mas não reconhece as mulheres nesse esporte.

Foto: Rafael Ribeiro / CBF

Foi a única menina numa família de cinco filhos e perdeu o pai quando ainda era um bebê de oito meses. Na casa dela, tentaram que prevalecesse a lógica – meninos brincavam de futebol, a menina, de casinha. Mas Formiga nasceu para desafiar a lógica, não para segui-la. E aos sete anos, lá estava ela arrancando a cabeça da boneca para improvisar o brinquedo que mais gostava: a bola.

A menina que apanhava dos próprios irmãos quando ousava jogar bola na rua virou uma das maiores jogadoras da história da seleção brasileira. Completando 42 anos neste 3 de março, Formiga é recordista absoluta de jogos com a camisa do Brasil (tem mais de 160, superando Cafu, recordista no masculino com 149), é recordista de Copas do Mundo (disputou 7, mais do que qualquer outro jogador/a) e em 2020 deverá quebrar seu próprio recorde nos Jogos Olímpicos – atualmente, ela esteve em seis edições olímpicas, mais do que qualquer outro atleta brasileiro. Neste ano, tem tudo para ir para a sua sétima. São 25 anos servindo a seleção, uma vida inteira dedicada ao futebol feminino.

"O mais engraçado é que o povo me fala essas coisas (recordes) e eu não sei de nada. Eu não me ligo nisso, eu quero é jogar futebol, juro para você, meu negócio é jogar bola", disse Formiga.

Foto: Rafael Ribeiro / CBF

Uma meio-campista que chega aos 42 anos como um dos pilares de uma das 10 melhores seleções do mundo não consegue isso à toa. Quando se pergunta à Formiga o seu segredo para a longevidade, ela brinca e diz que é "água de coco". Mas quem convive com ela sabe que a chave desse sucesso aí não poderia ser outra: é trabalho.

"Quando você atinge uma idade no Brasil, 30, 35 anos, você já é considerada veterana e falam em aposentadoria. A Formiga vem quebrar esse paradigma, esse preconceito. Ainda hoje, aos 42 anos, você vê que quando a Formiga está jogando é uma coisa, quando não está parece que o meio de campo fica perdido, não sabe o que fazer. A Formiga hoje é uma líder pela longevidade, persistência, pela forma com que conduz a vida dela. É um exemplo pra qualquer jogadora da nova geração", afirmou Marcia Tafarel.

Início

Quando ainda era Miraildes, Formiga dava seus dribles nas ruas de terra da periferia de Salvador e saía correndo ao ver os irmãos vindo atrás. Jogar bola era motivo de apanhar para ela. Mas nem as chineladas deles a afastariam de sua maior paixão. E foi numa tarde dessas de "baba" (como se chama o futebol de rua na Bahia) que ela foi vista de longe por Dilma Mendes, aquela a quem chama até hoje de "mãe pequenininha".

"Deus mandou um anjo na minha vida, que foi a Dilma Mendes. Ela me viu jogando num campo de barro e me convidou pra jogar no Euroexport da Bahia. Falei que ela tinha que convencer minha mãe, a fera Dona Celeste. Dilma abriu as portas do futebol feminino pra mim", contou a jogadora em entrevista à CBF TV. 

Dilma jogou bola também, mas num período em que futebol era proibido para mulheres. Acabou investindo na carreira de treinadora, montou o primeiro time de futsal feminino da Bahia e seguiu desenvolvendo o trabalho para meninas e mulheres no campo. Ao passar de carro perto do campo de barro onde Formiga jogava com os meninos, Dilma não hesitou em estacionar para falar com ela.

Foto: CBF

"Eu resolvi parar pra assistir. Ela descalça jogando no meio dos meninos, chutando a bola sem nenhum medo. O detalhe do chute, da finta… não era nem tanto a técnica, porque precisava aperfeiçoar isso, mas essa essência da coragem, da menina que estava buscando aquele espaço. Aquilo que a Formiga tinha era só dela, talento puro. Só precisava ser lapidada", contou às dibradoras Dilma Mendes, a "descobridora" de Formiga na Bahia.

Isso aconteceu quando a garota tinha 11 anos. Foi nessa época, que Dilma já quis levá-la para jogar no seu time recém-formado do Euroexport Bahia para poder formá-la como uma jogadora de verdade. Na época, a Mira, como era conhecida, não tinha a menor ideia do que queria com o futebol – apenas queria jogá-lo.

"O que importava pra ela era jogar. Ela treinava de manhã, se deixasse à tarde ia pro baba, se deixasse ia pra mais um baba, depois chutava bola na parede em casa. Ela não tinha essa coisa de: vou jogar na seleção. Ela jogava porque gostava mesmo", contou Dilma.

O apelido, não é muito difícil de decifrar de onde veio. Quem já viu Formiga jogar, entendeu na hora. Ela parece um flash em campo, se multiplica por todas as áreas dele e tem um fôlego que, ainda aso 42 anos, é de dar inveja. E claro, "Gol de Miraíldes" era algo muito difícil de se dizer, brinca a treinadora.

Foto: CBF

"Ela jogava de tudo. E se botar no gol, joga também. Se faltasse atleta de alguma posição, podia botar Formiga. Ela corria tanto, fazia tanta loucura. Quando a gente pensava que ia ser gol, chega a Formiga pra tirar. Quando a lateral perdia a bola, quem estava na cobertura? Formiga. Quando era gol nosso, quem tirava a bola de dentro do gol pra recomeçar logo o jogo? Formiga. Então, era uma Formiga, porque ela estava em tudo quanto é lugar", diz Dilma, aos risos.

A ideia da treinadora era levá-la para jogar um torneio no Sudeste para que, de lá, nem ela, nem os outros talentos que tinha em mãos precisassem voltar. Isso porque estando no Nordeste, naquela época, era difícil que tivessem alguma chance na seleção.

Acabou que o time todo foi "importado" para São Paulo e, na capital, fizeram história com o Saad, um dos maiores times de futebol feminino dos anos 1980 e 1990. Formiga foi para a seleção, jogou no São Paulo, no Palmeiras, no São José, colecionou títulos por clubes brasileiros (foi tricampeã da Libertadores, inclusive) e hoje brilha no PSG.

Décadas depois, quando Dilma vê Formiga ainda jogando em alto nível aos 42, ela não consegue notar nenhuma diferença da menina de 15 que começou a jogar os campeonatos pelo Euroexport (antes, ela só treinava, porque não tinha idade pra competição). "É tão comum pra mim ver a Formiga jogar, que eu a vejo jogando com 40 e é como se ela tivesse os 15, 16 do passado. Por incrível que pareça. Eu não vejo nada de diferente. Mas é extraordinário que ainda esteja em tão alto nível com essa idade".

Foto: CBF

Fenômeno

Não é raro ouvir técnicos ou jogadoras que já trabalharam com Formiga dizerem que ela deveria ter sido "a melhor jogadora do mundo" em algum desses seus 25 anos de carreira. Claro que sua posição de meio-campista/volante não ajuda tanto em premiações assim. Mas é impressionante como todos os treinadores que já conviveram com ela não cansam de exaltá-la. O próprio comandante do PSG atualmente, Olivier Echouafni, foi quem a convenceu a ficar por lá mais um ano porque a enxerga como um dos pilares do time.

Foto: CBF

Em 2016, após disputar sua sexta Olimpíada, Formiga chegou a se despedir da seleção brasileira e anunciar a aposentadoria. Mas o desejo de colaborar com o crescimento do futebol feminino e da nova geração de jogadoras prevaleceu e ela voltou a vestir a camisa amarela em 2017. Com duas medalhas de prata olímpicas (2004 e 2008), um vice-campeonato na Copa (2007), três ouros em Pan-Americanos, ela agora vive o sonho de voltar ao pódio em Tóquio.

Independentemente das conquistas que ainda podem vir em campo, fora dele, ainda falta o devido reconhecimento a uma atleta tão fora de série. "Acho que o Brasil ainda deve muito à Formiga. O peso dela é imensurável. Em especial ao nosso Estado da Bahia. Ela tem uma representação que eu não consigo dimensionar. Formiga deveria encerrar a carreira como melhor do mundo. Infelizmente, acho que o mundo vai ficar devendo a ela essa conquista."

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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