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Protestos, fogo na arquibancada e tensão: relato de uma torcedora no Chile

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05/02/2020 13h37

Foto: REUTERS/Edgard Garrido ORG XMIT: AIMEX

*Por Anita Efraim, de Santiago (CHI)

Quando soube que viria morar durante dois anos em Santiago, no Chile, torci muito para que times chilenos encarassem brasileiros na Libertadores. Eu e meu marido somos fanáticos por futebol e nos animamos com a possibilidade de ir a esses jogos.

No dia 1º de fevereiro compramos o ingresso para assistir Universidad de Chile x Internacional. Logo que decidimos ir, nem pensamos em violência, protestos, nem nada parecido. Foi quando o jogo mudou de horário que lembramos o que estava acontecendo. A partida estava programada para 19h15 e foi adiantada para 18h da terça-feira, dia 4 de fevereiro.

No dia 28 de janeiro, um torcedor do Colo Colo morreu ao ser atropelado por um carro da polícia. Manifestantes atiravam pedras em um veículo policial, que passou por cima de um deles, sem prestar socorro depois.

O ocorrido suscitou uma série de protestos no mundo do futebol. Não por causa do jogo em si, mas por causa da violência policial no país, problema que começou nas manifestações populares de 2019. Desde a morte do "hincha" do Colo Colo, outras torcidas têm se manifestado. Jogos chegaram a ser interrompidos por alguns minutos, outros tiveram de ser adiados por invasão de campo.

Anita e Henry estavam animados antes do jogo – mas nem conseguiram ficar até o fim por causa do medo do que poderia acontecer após o fogo (Foto: Arquivo Pessoal)

No duelo entre Coquimbo e Audax Italiano, uma ala mais radical da torcida entrou no gramado com uma faixa que dizia "ruas com sangue, campos sem futebol".

 

Sei que parece estranho que nós não tenhamos nem pensado nisso, mas o dia a dia em muitos bairros de Santiago é normal. Não há nem sinais de violência ou protestos. O período de férias vai até o fim de fevereiro e, nos primeiros meses do ano, as manifestações só ocorrem às sextas-feiras, no centro da cidade – longe de onde vivo e também de onde fica o Estádio Nacional, casa da LaU.

Quando soubemos da mudança de horário, comecei a pesquisar melhor sobre o assunto. Em Santiago, poucas pessoas pareciam se importar com a questão da segurança no estádio, o incômodo foi gerado pela dificuldade de chegar às 18h a uma partida. Assim, decidimos ir ao jogo sem grandes preocupações.

A LaU é um clube que vive um momento de reconstrução. Depois de ser quase rebaixada em 2019, voltar à Libertadores é muito importante para os torcedores. Por isso, achei que a maioria não gostaria de interromper o jogo. Foi assim por muito tempo e para vários dos presentes, mas não todos.

Fomos de metrô. O estádio fica a duas estações da nossa casa e tudo correu sem problemas. Os arredores do estádio estavam tranquilos e fiquei ainda mais calma quando vi várias crianças com os pais. No entanto, não pude deixar de notar que duas delas tinham máscaras. Seria para proteger contra bombas de gás lacrimogêneo?

Foto: REUTERS/Edgard Garrido ORG XMIT: AIMEX

Nossos ingressos eram para um lugar menos "popular" do estádio. Como se fosse a laranja do Pacaembu. Apesar de ser mais caro, nos atentamos a isso na hora de comprar as entradas com medo de sentar em algum lugar que não fosse seguro. Afinal, nunca tínhamos ido a um estádio no Chile e não sabíamos como seria. Bom, acertamos.

Chegamos meia hora antes do jogo começar, as pessoas respeitam lugar marcado (que se escolhe na hora de comprar ingresso) e não houve problemas até o intervalo. Meu único perrengue foi precisar de uma moeda quando precisei ir ao banheiro – você não paga para usar, mas pelo papel higiênico.

O público era muito diverso no nosso setor. Havia casais, famílias com crianças pequenas, senhores e pessoas mais jovens também. A maioria tinha a camisa da LaU. Mas notei que, mais abaixo de nós, uma mulher usava uma camisa do Peru e, atrás, o número 9 e o nome do centro avante Guerrero – principal jogador do adversário dos chilenos na tarde de ontem. Ninguém foi falar com ela, ninguém pareceu incomodado. Me chamou a atenção.

Fazia muito, muito calor. No verão, Santiago tem luz até 21h30. O horário mais quente do dia é por volta das 17h. Muitas mulheres usavam shorts e eu, com medo, saí de calça e passei o maior calor.

Protestos e confusão

Ao longo do jogo, houve diversas manifestações políticas. Havia uma faixa pedindo a renúncia do presidente Sebastián Piñera. No lugar do U, era o símbolo do time.

 

A torcida ainda cantou a famosa música que chama Piñera de assassino e o compara ao ditador Augusto Pinochet.

 

Falando em ditatura chilena, o Estádio Nacional tem uma marca muito forte dessa época. Há um setor do estádio, na parte norte, em que não senta ninguém. É um monumento em homenagem às vítimas da ditadura de Pinochet. Naquela época, o estádio foi usado como local de torturas e muitos chamados 'subversivos' morreram ali. Atrás, está a frase: "um povo sem memória é um povo sem futuro".

Ainda sobre o jogo, que no gramado era morno, com 0x0 no placar, tudo ia bem até os 30 minutos do segundo tempo, mais ou menos. Foi neste momento em que um grupo de torcedores do setor sul começou a atirar cadeiras e outros objetos nos policiais. Outros chegaram a invadir a pista ao redor do gramado.

O grupo, de aproximadamente 30 pessoas, estava atrás do goleiro Marcelo Lomba, do Internacional. Lomba estava claramente assustado com a situação e, enquanto sua equipe atacava, ele estava fora da grande área. A impressão era de que temia ser atingido.

Os torcedores que não estavam envolvidos começaram a se afastar. Tudo isso era muito longe de nós, do outro lado do estádio, e era difícil ver o que acontecia. Conseguimos ver que os policiais não subiram nas arquibancadas, só se defendiam com escudos.

Foto: REUTERS/Edgard Garrido ORG XMIT: AIMEX

Foi então que começamos a ver fumaça. De início, achamos que eram bombas de gás lacrimogêneo, mas não. Porque, em seguida, começou o fogo. Aquele grupo de torcedores ateava fogo em objetos bem na ponta da arquibancada.

 

Nessa hora, grande parte do estádio voltou a entoar cânticos em oposição a Piñera. Por outro lado, onde nós estávamos sentados, os torcedores começaram a ir embora. Ninguém tinha pressa ou corria. Era mais uma movimentação de precaução. No entanto, o mais impressionante era que, enquanto objetos pegavam fogo no setor sul, o jogo continuava. O jogo não foi paralisado.

Quem foi embora com medo de que a situação se agravasse não viu o fim do jogo.

É impressionante que, para a Conmebol, o simples uso de sinalizadores seja suficiente para parar um jogo. Mas uma chama no meio da torcida – que só crescia naquele momento – não é. Ainda vimos a polícia se mobilizar para apagar o fogo, mas não quisemos ficar para ver o resto. Meu medo era que o isso fosse o começo de uma grande briga entre torcedores e policiais.

O estádio fica muito perto da estação de metrô e chegamos bem rápido. Não vimos brigas ou confusões, apesar de relatos de que havia conflito em outro portão – provavelmente perto de onde estava o grupo que começou o incêndio.

Foto: Anita Efraim

E agora?

O governo repudiou as ações do grupo de torcedores, assim com o presidente da LaU. Se o clube conseguir seguir na Taça Libertadores, provavelmente será punido e deve perder algum mando de campo.

Mas é importante não encarar esse como um problema da Universidad de Chile. Todo o futebol chileno está 'inflamado' neste momento. A repressão policial se tornou a principal pauta da população, que pede o direito de se manifestar sem ser agredida e morta.

No ano passado, o campeonato foi interrompido antes do final por questões de segurança. A final da Libertadores teve de mudar de lugar.

Há muitos chilenos na Taça Libertadores. O Grêmio está no grupo da Universidad Católica, o Athlético vai enfrentar o Colo Colo. Isso sem falar que no dia 18 de fevereiro o Fluminense jogará em La Calera, a 1h30 de Santiago, pela Sulamericana. E há ainda a possibilidade do Corinthians pegar o Palestino.

Santiago será também o palco da Libertadores Feminina em 2020. Não posso dizer que corri riscos no estádio, porque não é verdade. Estava longe demais para isso. Por enquanto, a cidade vive um clima de tranquilidade, o que se deve especialmente às férias. Mas, a previsão é que em março as manifestações voltem com força. Com isso, o futebol pode ser ainda mais afetado.

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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