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O clube que desafiou a lei e formou a primeira seleção brasileira feminina

Renata Mendonça

06/09/2019 04h00

Primeira seleção feminina formada em 1988 (Foto: Acervo pessoal/Museu do Futebol)

Era um tempo em que futebol era proibido para as mulheres no Brasil. Não só por convenção social, mas por lei. E houve um clube no Rio de Janeiro que decidiu fazer essa ousadia: uma peneira para um novo time de futebol que estava sendo criado – só com mulheres. Os testes seriam feitos nas areias de Copacabana, e as jogadoras que fossem aprovadas integrariam o elenco do Esporte Clube Radar, que entraria para a história do futebol brasileiro.

Em 1981, foi fundado não o primeiro, mas com certeza o mais importante clube de futebol feminino do país. A proibição à prática das mulheres neste esporte caiu em 1979, mas naquela época ainda era um tabu gigantesco vê-las com a bola nos pés. O Radar desafiou a lógica e selecionou as melhores jogadoras do estado do Rio de Janeiro para formar um timaço – primeiro na areia, depois no campo.

Nos gramados, elas eram imbatíveis. Fora hexacampeãs brasileiras, hexacampeãs cariocas e chegaram a jogar para um Maracanã lotado no Rio de Janeiro. Mulheres que enfrentaram os piores preconceitos na infância, pura e simplesmente por não seguirem o "padrão" das bonecas e irem atrás da bola. Algumas foram expulsas de casa, outras tiveram que fugir e mentir para os pais para poderem viver o sonho de jogar futebol. São histórias de luta e de muita paixão pelo esporte que mereciam ter sido contadas há muito tempo, mas que, infelizmente, até hoje têm pouquíssimos registros. E foi essa curiosidade que despertou em Douglas Lima e Jefferson Rodrigues a vontade de produzir o documentário "Radar! Um Time! Uma Nação!".

O time do Radar foi fundado em 1981 (Foto: Arquivo Pessoal)

Descobertas

Um filme de 25 minutos que volta no tempo para falar com as chamadas "pioneiras" do futebol feminino no Brasil. Mulheres como Fanta, Roseli e tantas outras que formaram a primeira seleção brasileira feminina de todos os tempos – um time formado quase que 100% pelas atletas do Radar. Uma história que quase ninguém conhece e que foi descoberta pelos diretores ao acaso.

"A gente tinha outros dois planos de documentário que não deram certo. Aí na época da Copa do Mundo feminina, o Douglas me falou: a gente precisa de uma história boa do futebol feminino. Ele mora em Copacabana e um dia passou na frente de uma academia que tinha uma placa 'Esporte Clube Radar', lá tinha umas fotos e aí ele foi pesquisar a história. Encontramos pouquíssimas coisa sobre o time", contou Jefferson às dibradoras.

Jefferson Rodrigues e Douglas Lima, diretores do filme

Ao mesmo tempo, eles descobriram a exposição "Contra-Ataque" do Museu do Futebol e foram até lá para encontrar mais informações sobre esse passado tão pouco explorado do futebol feminino. Dali, conseguiram os contatos das ex-jogadoras que fizeram parte dessa história e, em uma semana, estavam com todo o material bruto filmado.

"Quando a gente foi gravando, eu disse para o Douglas: a gente está com ouro na mão. Isso aqui é uma história que é inacreditável as pessoas não saberem. É um filme que o futebol é pano de fundo, mas é uma história muito humana de mulheres que quiseram mudar uma situação social que existia. Mesmo sem saber como, elas foram à luta e fizeram. Elas mudaram a história", afirmou Jefferson.

Se hoje em dia, as jogadoras de futebol ainda enfrentam dificuldades como falta de estrutura para treinar, para jogar, e para obterem sustento, diante do imenso preconceito que ainda paira sobre a modalidade, imagina isso há três décadas, quando a ideia que se tinha para o papel da mulher na sociedade passava longe do campo. O julgamento começava dentro de casa.

"A história que mais me emocionou foi a da Rata com o pai dela. Ela foi expulsa de casa aos 12 anos por jogar futebol. Ela tem 18 irmãos. Nenhum deles aceitava que ela jogasse. Ela apanhava, sofria, o pai dela não entendia. Aí tentou ir pra São Paulo, se perdeu, morou na rua por muito tempo, até encontrar o Radar. Quando ela tinha 17 anos, precisou voltar para casa para pedir autorização do pai para viajar para fora representando o clube. Ela tinha certeza que iria apanhar. Mas a primeira coisa que ele fez foi dar um abraço nela. Naquele dia, o pai virou o maior fã que ela já teve e um dia chegou a dizer que ela era o filho que ele sempre sonhou ter. Não consegui conter as lágrimas quando ouvi o depoimento dela", admitiu.

Rata foi expulsa de casa por jogar futebol (Foto: Arquivo Pessoal)

"Todas elas têm histórias assim, de sofrimento, exclusão, de ter lutado muito pra realizar aquilo. E essas histórias são muito importantes e foram elas que possibilitaram que hoje a gente tivesse jogadoras como Marta, Cristiane…".

Seleção brasileira

Quando o Radar surgiu, foi como se ele tivesse plantado a sementinha do futebol feminino. Com um diretor determinado a fazer aquilo dar certo (Eurico Lira), o clube foi pressionando para que houvesse competições e mais times se formando. E quando começaram a surgir torneios internacionais de futebol feminino, que demandaram a criação de uma seleção, foi o Radar quem passou a representar o Brasil lá fora.

"As jogadoras do Radar passaram a viajar para vários lugares do mundo representando o Brasil. Elas eram a seleção feminina na época. O nosso filme acaba justamente em 1988, no Torneio Experimental da China, quando as atletas do clube viajam para lá para vestir a camisa da seleção em um Mundial", pontuou Jefferson.

O Mundial experimental de 1988 foi um teste que a Fifa fez antes de oficializar a criação da Copa do Mundo feminina em 1991. O Brasil ficou em terceiro lugar justamente com o time todo do Radar representando o país em campo.

Foto: Arquivo Pessoal

Mas de todas as histórias que queriam contar no filme, o mais difícil para os diretores foi encontrar imagens e registros daquela época. Na CBF, não há absolutamente nada desse período e, como Eurico Lira já morreu sem deixar herdeiros, também não há um acervo oficial do Radar. Restou aos cineastas recorrerem às próprias jogadoras, que guardam jornais e muitas fotos daquela época, e até mesmo à China, sede do Torneio Experimental de 1988, para conseguir as imagens dos jogos da seleção naquela época.

"Quando a gente descobriu a história, começou a correr atrás, a gente teve muita dificuldade  A CBF não tem nenhum registro dessa época. Arquivo de fotos é todo das jogadoras, elas tinham muitas fotos. Aí a gente tinha o contato de uma curadora de filmes de futebol da China e falamos com ela pra conseguir as imagens dos jogos do torneio. Isso foi o que deu mais trabalho", contou.

O resultado do filme que conta uma das histórias mais ricas e desconhecidas do nosso futebol será exibido no Cinefoot, festival de cinema e futebol, que acontece nos próximos dias no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em São Paulo.

"Elas não querem ganhar os milhões que os homens ganham, só querem o reconhecimento pelo que elas fazem", finalizou Jefferson.

O filme do Radar será exibido neste domingo (8/09) às 19h no Rio de Janeiro, no dia 12/09 em Belo Horizonte no mesmo horário e às 21h no dia 14/9 em São Paulo. A programação completa está disponível aqui.

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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