Topo

Dibradoras

Da proibição ao favoritismo: como a França busca o 1º título da Copa

Dibradoras

07/06/2019 04h00

Foto: Reuters

*Por Juliana Arreguy

Anfitriã da Copa do Mundo de 2019, a França apresenta uma história contraditória no futebol feminino: criou uma das primeiras equipes de que se tem registro, no início do século XX, e, ao mesmo tempo, só apresentou uma evolução na modalidade recentemente. Em cem anos, o futebol feminino foi proibido, passou longe dos holofotes e ganhou fôlego só nos anos 2000, com o desenvolvimento da modalidade entrelaçado ao crescimento do Lyon, hoje hexacampeão da Champions Feminina. Se o país é referência no trato ao esporte, a caminhada das mulheres até o Mundial foi longa e cheia de entraves.

O primeiro time só delas, o Fémina, nasceu em 1912, três anos antes da criação da Federação Francesa de Futebol (FFF). Mesmo mais jovem, a FFF não quis aceitar a filiação de mulheres e, em 1941, proibiu a prática durante o regime de Vichy, governo autoritário vigente durante a Segunda Guerra Mundial. A modalidade só foi liberada novamente na década de 1970 e custou a deslanchar — a primeira participação em Copas do Mundo foi apenas em 2003, com três ciclos de atraso em relação à primeira edição, em 1991.

Foto: FFF

Eliminada na fase de grupos, a seleção retornou ao Mundial em 2011 e conseguiu o quarto lugar. A campanha já era parte de um projeto que vinha sendo implementado desde a Eurocopa de 2009.

"A França começa a olhar o futebol feminino de forma diferente depois de chegar às quartas na Eurocopa de 2009. Foi numa época em que surgiram atletas que individualmente eram muito boas, como no caso da Louisa Necib e da Sonia Bompastor", explica o jornalista Rafael Alves, criador do portal Planeta Futebol Feminino.

Foto: FFF

Alves cita o investimento na formação das atletas como um dos pilares do desenvolvimento da modalidade na França nos últimos dez anos. "O crescimento do futebol no país, que também se confunde com o da seleção, passa por uma série de fatores que incluem outro olhar para a base e a maneira séria como o país passa a investir no futebol e na liga", diz.

As francesas passaram pelo quarto lugar na Olimpíada de Londres-2012 e chegaram nas quartas-de-final da Rio-2016. Na Copa de 2015, no Canadá, também foram às quartas, assim como nas edições de 2013 e 2017 da Euro com campanhas cada vez mais competitivas. Atualmente ocupam o quarto lugar do ranking da Fifa.

O papel do Lyon

Time mais vitorioso da Champions League, com seis vitórias no currículo — quatro delas consecutivas, o Lyon tem em seu elenco sete das 23 jogadoras da Seleção Francesa. Os feitos da equipe são históricos não só a nível mundial no futebol feminino, mas também ajudaram a impulsionar o crescimento da modalidade no país que será a sede da Copa do Mundo em menos de quinze dias.

Foto: Reuters

"O Lyon é um ponto fora da curva hoje porque foi o primeiro time europeu que começou a investir de fato no futebol feminino", avalia Alves. "Isso influenciou e ajudou a evoluir o futebol no país. A partir do momento em que o Lyon virou uma grande potência, a Federação Francesa deve ter aberto os olhos sobre como cuidar bem da modalidade e torná-la um atrativo. O crescimento do Lyon, na minha opinião, ajudou a impulsionar a seleção francesa", acrescenta.

A hegemonia do Lyon, criado em 2004, levou outras equipes francesas a investirem mais na modalidade. O PSG, que ostenta contratações de peso no masculino, também criou uma equipe competitiva no feminino, a ponto de disputar uma final de Champions na temporada 2016/2017 — perdendo, justamente, para o Lyon na final. Hoje a liga nacional já apresenta um futebol mais equiparado, com Montpellier e Bordeaux também despontando entre as equipes de peso.

"De todas as convocadas só duas atuam fora do país (a goleira Pauline Peyraud-Magnin, do Arsenal, e zagueira Aïssatou Tounkara, do Atlético de Madrid). Isso mostra que a liga, se não é muito forte, ao menos tem condições de manter as atletas na França", observa o jornalista.

O fenômeno Diacre

Sem repetir o comando nos três Mundiais disputados até então (2003, 2011 e 2015), a França vive grande expectativa sob a alçada da treinadora Corinne Diacre, que assumiu o time em 2017. Apesar de ser sua estreia à frente da seleção como técnica, Diacre já é uma veterana de Copas: foi capitã da primeira equipe francesa a jogar um Mundial. Em seu currículo, também carrega a responsabilidade de ter sido a primeira mulher a ter treinado um time masculino na França — o Clermont Foot Auvergne 63, que atua na segunda divisão.

Foto: Divulgação

"A Corinne Diacre é uma das principais responsáveis pelo favoritismo da França", observa Alves. Para ele, a treinadora trabalhou bem o psicológico das jogadoras, que passaram a administrar melhor a pressão em campo: "Hoje vemos uma equipe muito calma e muito fria. É uma seleção que, mesmo que não esteja nos seus melhores dias, se fizer um gol tem grandes chances de ganhar a partida, dificilmente vão levar um empate."

Uma das prioridades de Diacre foi criar um banco forte o suficiente para substituir o elenco titular à altura. "Se sair a Amandine Henry, por exemplo, você vai ter a Bussaglia que vai dar conta do recado, isso quando não jogam juntas", diz o jornalista.

"De 2015 pra cá o que muda é que a seleção francesa passa a ter consciência de que ela faz parte do que há de melhor no futebol feminino hoje, o que é justo", afirma. "Com exceção da goleira, a quem tenho muitas críticas, acredito que todas as outras titulares seriam titulares em qualquer seleção do mundo", acrescenta.

Força do elenco

"Se por acaso a Seleção Francesa terminar como campeã, muito vai passar pela Amandine Henry, uma meia de muita qualidade, e também pela Eugénie Le Sommer, uma atacante excelente que considero subestimada", observa o jornalista.

As duas atletas, titulares no Lyon, configuram entre os maiores destaques da equipe. Henry já integrou as dez finalistas ao prêmio de melhor jogadora do ano pela Fifa, ficando com o 7º lugar em 2018 e com o 9º em 2016. "Ela atua como volante, avança, chega, finaliza muito, é uma atleta de muita jogada", resume Alves.

Foto; Reuters

Outra jogadora do Lyon, Delphine Cascarino, de apenas 22 anos, é outra aposta para o Mundial. A atacante passou pelas seleções de base e foi uma das melhores atuações da Copa do Mundo sub-20 de 2016, recebendo a Bola de Bronze.

No Grupo A, com Noruega, Nigéria e Coréia do Sul como adversárias, a expectativa é que a seleção avance à próxima fase sem dificuldades. "Acho que ela talvez termine em primeiro. Há uma segunda briga ali, com leve favorecimento para a Noruega na segunda vaga contra a Coréia do Sul", palpita Alves.

As donas da casa

O país apresentou sua candidatura para sediar a Copa ainda em 2014, logo que a Fifa abriu a licitação para os interessados. No fim, disputou o páreo com a Coréia do Sul e foi anunciada, em março de 2015, como a anfitriã de 2019.

A postura como "dona da festa" levou à grande procura por ingressos nas nove cidades-sede. Estádios tradicionais que serviram de palco para jogos da Copa de 1998, o Stade de la Mosson (Montpellier) e o Parc des Princes (Paris) também foram escolhidos para receber partidas do feminino. Além disso, três emissoras francesas adquiriram os direitos de transmissão do Mundial, incluindo a gigante TF1, líder de audiência no país.

A propaganda política entra na conta do prestígio à modalidade. O presidente Emmanuel Macron utilizou o Twitter para parabenizar as atletas do Lyon pela conquista da Champions e lembrar que a Copa será realizada no país em poucos dias. Já a convocação foi exibida em rede nacional como convite à torcida pelas jogadoras.

O pontapé inicial da seleção — e do próprio Mundial — será no dia 7 de junho diante da Coréia do Sul às 16h (de Brasília), no Parc des Princes. Após mais de um século, as francesas finalmente assumem o protagonismo do futebol na corrida pelo seu primeiro título. Já é histórico.

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

Dibradoras