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Caso Neymar: poucas conclusões, alguns erros e muitas lições

Renata Mendonça

04/06/2019 10h39

 

AFP

Nos últimos dias, veio à tona uma avalanche de notícias sobre uma acusação de estupro envolvendo o atacante da seleção brasileira e do PSG, Neymar. E a cada 24 horas, vemos fatos novos surgirem nesse caso: houve a acusação, o BO, a defesa de Neymar expondo prints e mais prints de uma conversa privada em seu Instagram, uma nova investigação sobre crime de exposição de imagens íntimas, uma declaração do pai dele dizendo que preferia crime de internet a crime de estupro, exames de imagem da vítima mostrando lesões corporais, uma declaração de um ex-advogado dela dizendo que a acusação dela era de agressão, não de estupro.

Os capítulos dessa história estão muito mal contados e não cabe a nós tirar quaisquer conclusões em cima de fatos bastante inconclusos que aparecem diariamente sobre esse caso.

Mas há alguns erros e algumas lições que já podemos tirar de tudo isso. Enumeramos aqui:

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1- A gestão inconsequente da "crise"

Uma acusação sobre estupro é muito séria. Isso, ninguém há de negar. E é claro que Neymar, midiático que é, iria estourar na capa de todos os jornais e sites do mundo inteiro sobre o assunto. E é óbvio que ele tem todo o direito de se defender e mostrar o seu lado da situação.

Aí ele escolhe fazer um vídeo em suas redes sociais para contar sua versão dos fatos. Até aí, tudo certo, direito dele. Há os jogadores que preferem se calar – como foi com Robinho, condenado por estupro na Itália, como tem sido com Cristiano Ronaldo, acusado do mesmo crime; ambos usam poucas palavras para comentar o assunto.

Neymar falou, mas para se defender da acusação, expôs para os seus mais de 100 milhões de seguidores os prints detalhados de uma conversa privada em que havia fotos íntimas da vítima em questão. Isso, por si só, é crime, por não ter acontecido sob o consentimento da pessoa envolvida. Ninguém pode sair por aí espalhando "nudes" de pessoas que não o autorizaram para isso. O tal "revenge porn", que infelizmente é muito comum.

Ou seja, para provar seu ponto, Neymar divulgou toda uma conversa que expôs para milhões de pessoas fotos íntimas da vítima (ainda que ele tenha borrado algumas partes), quando poderia ter simplesmente mostrado os prints da conversa do dia seguinte ao encontro dos dois. Só isso já respaldaria sua defesa. Para a polícia, aí sim, ele tem o direito de mostrar todas as provas que estejam ao seu alcance.

Fora que o conteúdo da conversa dos dois também afeta a imagem do próprio Neymar. "Tô bêbado" e "to muito louco", e outras mensagens mal escritas que mostram o estado do jogador naquele momento. Seria interessante mostrar isso para os milhões de fãs do camisa 10, incluindo crianças que se inspiram nele? Seria realmente necessário tudo isso?

Aí o pai dele apareceu para dizer que "prefere um crime de internet a um crime de estupro". Como se crime fosse algo para se preferir um a outro. Se Neymar é inocente, basta se defender das acusações de maneira limpa. Ninguém precisa cometer um crime para provar sua inocência em outro. Os fins não justificam os meios.

2- As piadas sobre um estupro

Com a divulgação de toda a conversa que Neymar teve com a vítima, sugiram as inúmeras "piadas" usando frases copiadas do diálogo num tom jocoso. Não é a primeira vez que um possível crime de violência contra a mulher vira "meme". Quem nunca recebeu ou fez piada com o goleiro Bruno, condenado por assassinar sua ex?

Ainda não se sabe se o estupro aconteceu ou não. Mas nem por isso deve-se rir de violência tão grave como essa.

"Bom dia razão da minha libido". "Será que vc não é um fake brincando com o meu coração". "Saudades do que a gente não viveu ainda". Frases como essa, tiradas do diálogo de Neymar com a vítima que o acusa de estupro viraram memes que inundaram as redes sociais nos últimos dias.

Uma acusação de um crime sexual grave envolvendo o maior jogador brasileiro em atividade atualmente virou piada. Reduzimos um assunto de tamanha seriedade a memes na internet.

É sempre bom lembrar: no Brasil, a cada 11 minutos, uma mulher é estuprada. São 164 casos de estupro por dia, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública em 2017. Poderia ser sua irmã, sua mãe, sua filha. Nada disso é engraçado.

3- O que é consentimento

"Ah, mas olha as mensagens, ela estava querendo". "Ela aceitou passagem para Paris, viajou, claro que queria". "Olha as fotos que ela mandou, vagabunda, queria transar".

Primeiramente que não é nenhum crime ou demérito uma mulher querer transar. Eu chutaria que a maioria delas quer. Que bom, inclusive. O desejo sexual não é exclusivo dos homens e o direito de expor isso também não deveria ser exclusividade deles.

Posto isso, gosto sempre de lembrar uma analogia bem simples para entender o que é "consentimento". E vejam, não estou dizendo que houve ou não houve consentimento no caso do Neymar, isso é o que a polícia está investigando. Mas esse caso evidenciou o quanto as pessoas ainda não entenderam o conceito básico dessa palavra.

Basta comparar com uma xícara de chá. Você pode oferecer chá para uma pessoa e ela aceitar, ficar feliz com isso. Mas aí no tempo do preparo do chá, ela muda de ideia. Por algum motivo, não quer mais. Aí o que você faz? Enfia o chá goela abaixo? Não, você aceita que ela não quer mais e deixa o chá de lado. Pronto.

Todo mundo tem o direito de mudar de ideia. E ninguém é (ou deveria ser) obrigado a fazer nada. Ponto. A mulher pode ir até a casa do cara, tirar a roupa, deitar na cama dele. Se em algum momento ela disser não, seu desejo deve ser respeitado. Assim como vale para a situação contrária (apesar de ser muito menos frequente, como mostram os dados de estupro cometidos por homens em comparação dos cometido por mulheres).

4- Caso vai "acabar" com a carreira de Neymar

Ser acusado de qualquer crime não é legal, obviamente. É algo que abala de alguma forma a imagem de uma pessoa. Mas muita gente está justificando o fato de Neymar ter exposto a conversa íntima dele com a vítima pelo receio de que essa acusação "acabasse com sua carreira".

Foto: AFP

Mas vejamos, muitos outros craques do futebol já foram acusados de estupro e seguiram sua carreira normalmente. Os mais recentes casos foram os de Robinho, que foi efetivamente condenado na Itália e seguiu sua carreira normalmente – hoje, joga no Istambul, da Turquia; e o de Cristiano Ronaldo, acusado do mesmo crime, e o atacante português continua sendo o astro de sempre, com o mesmo status na Juventus.

No passado, houve o caso do hoje técnico Cuca, acusado de um caso de estupro ocorrido na Suíça em 1987 quando jogava pelo Grêmio. Houve uma denúncia envolvendo o nome dele e de mais três colegas, que acabaram detidos por alguns dias até serem liberados para voltar ao Brasil. Atualmente, ele segue a carreira no futebol sem que as pessoas sequer se lembrem desse fato.

São casos que mostram que uma acusação ou condenação por estupro não acabam com a carreira de um jogador. É mais fácil esses casos virarem piada na internet do que terem alguma consequência mais grave para um poderoso astro do futebol.

Já essa mulher, que teve seu corpo exposto em todos os lugares e seu nome divulgado por alguns veículos, essa já está julgada e condenada, independentemente do que a polícia venha a concluir.

5- Acusação falsa também é grave

Comunicação falsa de crime também é algo muito sério. De qualquer crime. Em se tratando de um crime de estupro, é ainda mais grave por conta de toda a dificuldade que as mulheres enfrentam para que suas palavras sejam levadas a sério em uma denúncia. Elas já têm seu depoimento posto em dúvida pelos próprios delegados na hora do boletim de ocorrência. Quando você chega à delegacia para denunciar um roubo, você diz que foi roubado(a) e ninguém te pergunta: o que você estava usando, por que estava ali naquele momento, o que estava fazendo naquele lugar. Quando uma mulher relata um estupro, as primeiras perguntas são sempre essas: que roupa, por que estava ali, o que estava fazendo. Perguntas que já direcionam a culpa do que aconteceu para ela, a vítima.

Uma acusação falsa de um crime como esse contribuiria para esse descrédito da palavra das mulheres nessa situação.

Isso não é para dizer que a mulher que acusa Neymar está mentindo. Mas para a reflexão da complexidade de todo o caso.

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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