Topo

Dibradoras

Joanna Maranhão: o legado da atleta que não se calou vai além das piscinas

Renata Mendonça

28/07/2018 09h20

Foto: Divulgação CBDA

Eu não sei o que você estava fazendo aos 17 anos de idade, mas Joanna Maranhão estava disputando uma final olímpica. Mais do que isso, ela estava conquistando, ali em Atenas-2004, aquele que seria o melhor resultado da natação feminina do Brasil até hoje em Olimpíadas. Repito: tudo isso com apenas 17 anos. À época, aquele quinto lugar a fez ser chamada "a maior promessa da natação".

Quase 15 anos depois disso, com dezenas de recordes e medalhas acumuladas, veio a fatídica decisão de parar. Foi nesta sexta-feira que Joanna Maranhão anunciou o fim de sua carreira no alto rendimento e sua despedida das piscinas – ao menos no nível competitivo. E é claro que as conquistas e aquele quinto lugar serão sempre lembrados em sua história como atleta. Mas o legado que esta nadadora nos deixa vai infinitamente além do que ela fez dentro da água.

"Eu não gosto de fala em legado, acho que tudo o que eu fiz fora da piscina e as posturas que eu tive são coisas que eu não estava fazendo mais do que a minha obrigação", disse ela às dibradoras.

Leia mais: Aos 31 anos, Joanna Maranhão anuncia aposentadoria da natação

Em um país onde os atletas se esquivam tanto em se posicionar, em reivindicar, e lutar por um esporte mais justo e mais transparente, Joanna era exceção. Mulher forte que, literalmente, nunca fugiu da raia, ela não se calou sobre os desmandos  e a corrupção que permeava a Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA), não se calou sobre o abuso que sofreu na infância e o desafio de lidar com esse trauma todos os dias,  nem deixou de falar abertamente sobre a depressão, doença contra a qual ela luta até hoje.

"O que eu sinto que fiz de 'diferente' e que as pessoas se identificam com isso, é que eu procurei sempre humanizar esse processo, não ser aquela atleta que só fala dos resultados bons, mas que fala de absolutamente tudo. De resultados não tão bons, de quando eu estou feliz, quando eu não estou, porque todo mundo é assim a vida toda, não tem ninguém apaixonado pela profissão o tempo inteiro. A gente sempre passa por algum momento difícil, a carreira de atleta permeia esse processo em que a gente treina muito duro e o resultado não vem. Eu nunca quis esconder isso, sempre quis falar disso com o máximo de clareza possível", afirmou. 

Com oito medalhas pan-americanas no currículo, Joanna Maranhão encerra a carreira como recordista sul-americana dos 200m borboleta, dos 200m costas e dos 200m medley em piscina longa, entre outras marcas (Foto: Divulgação)

Sem medo de retaliações, Joanna sempre falou o que pensava e nunca "disfarçou" suas críticas a Coracy Nunes, hoje presidente afastado da CBDA (Confederação Brasileira de Esportes Aquáticos) justamente pelos problemas com a Justiça.

Em março de 2017, quando uma nova eleição estava prestes a acontecer e a chancelar mais quatro anos de comando a ele – que estava no posto desde 1988 -, Joanna Maranhão se uniu a outros nadadores para adiar o pleito na Justiça por conta de uma manobra de Coracy, que tentou determinar ele próprio quem representaria a comissão de atletas e teria direito a voto na eleição. A pressão deu certo – e até a diretoria comandada por Coracy Nunes na confederação foi afastada do cargo pela Justiça.

"Eu não consigo compactuar como esse tipo de coisa, com corrupção, com as coisas feitas de maneira errada. Eu acho que quando você não toma uma posição diante de algo, na verdade, você está tomando a posição de não fazer nada. E eu não consigo me calar diante disso", opinou ela à época em entrevista ao podcast das ~dibradoras.

Joanna foi também fiel aos seus princípios quando escolheu deixar a Unisanta no início deste ano, depois que o clube contratou Ricardo de Moura, ex-diretor da CBDA, também desafeto da nadadora por todas as denúncias que ela nunca deixou de fazer.

Foto: Divulgação CBDA

O que vemos nela está completamente extinção em outros atletas: a coragem para falar e lutar por um esporte melhor. Mas é claro que, ao longo da carreira, ela acabou prejudicada por "falar demais" – só que nem por isso escolheu se calar.

"É óbvio que financeiramente pra mim é péssimo. Se eu fosse dona de uma empresa, eu não investiria em Joanna. Eu ia investir naquele atleta de foco, força, fé, que eu acho um saco, mas é o que vende."

Por conta desses posicionamentos fortes, Joanna também sofre constantemente ataques na internet, como aconteceu no Rio de Janeiro, durante a Olimpíada, quando comentários ofensivos e violentos inundaram sua timeline. Ela não teve dúvidas: deu print em todos e fez a denúncia.

"As pessoas têm que entender que a gente não vai mais calar a boca. Eu não vou para a cozinha – eu vou se eu quiser ir. E é isso, não importa o que elas pensem."

"Eu me calei em relação ao meu abuso por muitos anos. Depois que eu verbalizei isso, que eu consegui vomitar isso, eu não me calo pra mais nada. Se tem uma coisa que me incomoda, eu vou falar", diz ela.

Quando olhamos para a força dessa mulher que superou o trauma de um abuso sexual aos 9 anos de idade, a depressão que quase a levou ao suicídio duas vezes e as tantas retaliações que sofreu ao longo da carreira por lutar por um esporte mais justo e transparente, fica fácil entender o tamanho dessa perda para a natação. Joanna sempre foi um pouco de todas nós: forte nas suas fragilidades, resistente para seguir adiante quando o mundo parecia te dizer para parar.

Foto: Divulgação CBDA

"Naquela Olimpíada de Atenas, teve um resultado muito emblemático. A gente esteve em três finais, eu nos 400 medley, a Flávia Delaroli nos 50m livre e o revezamento 4x200m livre. Foi a primeira vez que a natação feminina teve um resultado melhor que a masculina. A gente não deu continuidade a isso, mas depois dos Jogos de Londres em que a gente só teve 4 representantes, passou-se a ter um cuidado maior com a natação feminina, uma médica do esporte feminina, uma ginecologista, trabalho psicológico, enfim. Isso fez com que a gente passasse a compreender melhor a fisiologia da mulher e esses resultados estão começando a aparecer agora. Ainda falta muita coisa, mas estão começando", avaliou Joanna. 

Por muito tempo pudemos contar com a representatividade dela nas piscinas. Agora, depois do tanto que ela nos deu na água e fora dela, é chegada a hora de darmos a ela seu merecido reconhecimento. Com a aposentadoria de Joanna, a natação feminina e o esporte brasileiro perderam uma das atletas mais importantes que o país já teve – mas, fora das piscinas, a certeza é de que ela seguirá nos inspirando.

 

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

Dibradoras