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Não é uma disputa: nem futebol feminino, nem masculino - apenas futebol

Roberta Nina

02/07/2018 04h36

*Por Roberta Nina e Renata Mendonça

A Copa do Mundo da Rússia começou no dia 14 de junho e como já virou praxe nos últimos anos durante competições de futebol masculino, algumas páginas da internet e torcedores começaram a propagar o discurso que a seleção feminina era heptacampeã e que a jogadora Marta era a maior goleadora da história da seleção brasileira.

Vale ressaltar que ambas informações estão corretas: o Brasil é heptacampeão – mas da Copa América, coisa que pouca gente sabe, e conquistou o último título em abril deste ano; Marta é ,sim, a maior artilheira da história da seleção entre homens e mulheres, colecionando 103 gols, contra os 95 de Pelé – e conseguiu alcançar esse feito ultrapassando o craque em 2015, ainda com menos jogos do que ele na carreira.

A pergunta que fica é: qual é o motivo para que tais comparações surjam em meio a uma Copa do Mundo masculina, onde a seleção disputa o hexacampeonato? É possível que muita gente só tenha conhecimento desses fatos agora, já que na época em que tudo aconteceu, quase ninguém divulgou o feito de Marta ou os jogos da Copa América. Poucas pessoas assistiram/assistem aos jogos da seleção feminina – até porque, muitas vezes eles não são transmitidos – e, mais do que isso, o interesse por parte do grande público em conhecer mais os times e as jogadoras do futebol feminino ainda é raridade, infelizmente.

Marta é a maior artilheira da história da seleção brasileira (Foto: Mowa Press)

Hoje em dia é possível se informar e acompanhar os jogos femininos do Brasileirão, do Paulista, da Libertadores, dos amistosos e torneios da seleção com muita facilidade em páginas independentes e especializadas no assunto, isso sem citar próprio site da CBF onde constam informações sobre as partidas e jogadoras para quem quiser acessar. Transmissões online também são feitas pelo site da Confederação.

E, de qualquer forma, independente de acompanhar uma coisa ou outra, o que precisa ficar claro aqui é que não há uma disputa em questão. Não é futebol feminino x futebol masculino. Nenhuma das jogadoras quer competir com os jogadores por atenção ou destaque. Elas querem coexistir. Querem acompanhar a Copa do Mundo masculina agora torcendo pelo hexa e ver a torcida brasileira acompanhar também com afinco a Copa do Mundo Feminina no ano que vem torcendo pelo título inédito. Não existe (ou não deveria existir) futebol feminino e masculino. Deveria existir futebol, e apenas isso.

A atacante – e maior artilheira da história da Olimpíada, Cristiane – falou sobre isso também em suas redes sociais.

"Nós do futebol feminino ficamos muito felizes e honradas em saber que estamos nesta lista cheia de craques talentosos (menção à lista dos artilheiros da seleção) Acho que não é o momento para tais "comparações", até porque não queremos apenas sermos lembradas em situações nas quais o masculino esteja disputando competição. (…) Vamos torcer muito para que nossa seleção traga o hexa e deixem os torcedores felizes,e no ano seguinte aí sim divulguem e acompanhem a modalidade", afirmou.

Para refrescar a memória

Quando a seleção brasileira de futebol feminino disputou sua sétima Copa do Mundo, em 2015, no Canadá (um ano depois do torneio masculino ter acontecido no Brasil), poucas pessoas demonstraram interesse ou acompanharam o desempenho da equipe que acabou eliminada pela Austrália por 1×0, nas oitavas de final.

A imprensa pouco noticiou e quando o fez, divulgou informações erradas sobre placares e gols marcados, além de reservar espaço minúsculos em seus jornais, dando pouca importância ao torneio.

A matéria abaixo, por exemplo, é da Folha de S.Paulo (14/06/2015) e destaca a vitória do Brasil sobre a Espanha durante a Copa do Mundo e relembra que a seleção já havia vencido a Coreia do Sul com gols de Marta e Andressa Alves, que segundo frisou o jornal, era a artilheira da seleção com dois gols.

A informação estava incorreta, já que o primeiro gol do Brasil no Mundial foi contra a Coreia e marcado por Formiga. O outro gol foi marcado por Marta e a Andressa só havia marcado um gol contra a Espanha – ou seja, não era a artilheira.

Nós, do dibradoras, começamos nosso trabalho exatamente nesta época justamente por perceber uma lacuna nos meios de comunicação para falar sobre o esporte feminino, ainda mais em ano de uma Copa do Mundo. Nossos primeiros podcasts na Rádio Central3 aconteceram durante o Mundial do Canadá e, depois dele, no Pan Americano, em Toronto, em que uma de nós estava in loco para produzir matérias e conversar com as jogadoras.


Foi triste perceber lá durante a cobertura que a imprensa brasileira simplesmente não frequentava os jogos da seleção feminina, que aliás estava com sua equipe principal e na briga por mais um ouro. Éramos as únicas representantes de mídia do Brasil para entrevistar as jogadoras na zona mista. Enquanto isso, os jogos da seleção masculina, que viajou para aquele Pan com um time C, completamente despreocupado com o torneio, tinha as salas de imprensa repletas de jornalistas brasileiros.

A pouca cobertura que aconteceu naquele Pan teve direito a pérolas bizarras, como a entrevista de um repórter com a atacante titular da seleção, Andressa Alves, em que por duas vezes ele a chamou de Alessandra.

Um ano depois, durante os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, a seleção feminina fez uma primeira fase arrasadora. Bateu a China por 3×0, a Suécia por 5×1 e empatou em 0x0 com a África do Sul. Enquanto a masculina começou com dois empates desanimadores contra África do Sul e Iraque.

Enquanto a seleção masculina ia mal nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, os torcedores passaram a torcer pela feminina (Foto: Reprodução)

Foi o que bastou para começarem as comparações, que vieram por parte da imprensa e da torcida – algumas camisas foram vistas com o nome de Neymar riscado para substituí-lo por Marta. Na época, o narrador Galvão Bueno tratou de cutucar o camisa 10 da seleção: "Ontem, no Engenhão, num determinado momento, a torcida começou a gritar que a Marta joga mais do que o Neymar. Eu entendi isso não só como uma brincadeira, mas como um desabafo. O futebol feminino tem jogado aquilo que o torcedor quer ver. E o futebol masculino não joga o que o torcedor quer ver. Até porque não há comparação da Marta com o Neymar. Ela tem cinco Bolas de Ouro, tem todos os títulos. O Neymar pode até vir a ser mais importante do que ela. Hoje, é a Marta. Nesse momento, ela é mais importante".

Agora, em plena Copa do Mundo masculina acontecendo na Rússia, as comparações voltaram à tona, resgatando números e referências antigas para elencar vitórias, gols e até mesmo salários dos jogadores e jogadoras. Na hora da emoção e de enaltecer o feito das meninas, até o heptacampeonato da Copa América entrou em jogo para dar a elas uma superioridade que não existe porque compararam os sete títulos de outro torneio com o número de Mundiais que o futebol masculino já conquistou, o pentacampeonato.

Nós do futebol feminino ficamos muito felizes e honradas em saber que estamos nesta lista cheia de craques talentosos. Acho que não é o momento para tais "comparações",até pq não queremos apenas sermos lembradas em situações nas quais o masculino esteja disputando competição. Gostaria que postagens como está seja lembrada em ano de Copa do Mundo Feminina e muitas outras competições importantes que disputamos,assim como foi a Copa América desse ano,e pouco foi se falado. Falo isso pq todas as vezes que o masculino disputou uma competição sempre foi colocado um "comparativo" nosso com o deles. Não estamos em lados opostos,somos do mesmo país e estamos juntos levando o nome de uma nação mundo a fora. Temos a Marta,nossa camisa 10 com mais bolas de ouro na história do futebol,temos uma Formiga que mais disputou Copa do Mundo e jogos Olímpicos e outras meninas fora de série. Ao invés de criticarem como muitos estão fazendo,dizendo que feminino não conta,que as goleiras são ruins, que deveria diminuir o gol e que nunca ganhamos nada, agradeçam por sermos brasileiros e principalmente procurem saber sobre a história do futebol feminino e suas dificuldades. Nossa Copa do mundo e jogos olímpicos são tão importantes e difíceis quanto a dos homens,pois enfrentamos as melhores seleções do mundo. Então por favor,não nos diminuam. Vamos torcer muito para que nossa seleção traga o hexa e deixem os torcedores felizes,e no ano seguinte aí sim divulguem e acompanhem a modalidade. (Apenas uma dica de quem já viu isso acontecer muitassss vezes 😉)

Uma publicação compartilhada por @ crisrozeira em

Mas não é isso que as jogadoras querem. Andressa Alves, jogadora do Barcelona e da seleção, falou às dibradoras sobre o assunto. "Sobre a Olimpíada, quando a gente estava bem, estavam falando muito bem da gente. Aí quando a gente perdeu na semifinal criticaram muito, e a gente já esperava isso. As pessoas comentam o que passa no momento, se a masculina tá mal e a feminina tá bem, eles começam a torcer pra feminina. Não tem que ser assim. Tem que torcer pra gente e pros caras igualmente. Se os dois estão bem ou um ou outro estão bem, tem que ter o apoio igual", disse a jogadora.

Andressa Alves, Cristiane e Marta em campo durante os Jogos Olímpicos de 2016 (Foto: Ricardo Stuckert/CBF)

"Ano que vem é a nossa Copa do Mundo e eu não sei se vai ter uma cobertura como é a do masculino. Mas eu espero que tenha uma cobertura legal para que as pessoas que gostam do futebol feminino possam assistir em qualquer canal de TV aberta", completou Andressa.

Seleção brasileira posa para foto antes da estreia na Copa do Mundo feminina de futebol no Canadá (Foto: Minas Panagiotakis/Getty Images/AFP)

E as comparações não param por aí. Como Cristiane citou em seu post no Instagram, algumas pessoas insistem na ideia de mudar as regras do futebol feminino para que ele fique mais "chamativo e competitivo". O que muitas dessas pessoas desconhecem é que o nível do futebol feminino tem elevado bastante ultimamente e que o que precisa ser melhorado é a preparação física das atletas, desde a base até o profissional, seja dentro dos clubes e seleções.

"Como já falei em várias reportagens, não tem como comparar o futebol masculino com o feminino, pelo porte físico dos jogadores, por serem mais fortes, mais rápidos. Mas isso não faz com que o futebol feminino seja feio ou que tenha que diminuir as traves, por exemplo. Mas mostra que as jogadoras tenham que se preparar em alto nível pra poder jogar o futebol feminino em alto nível e assim ter grandes jogos como tem na Olimpíada, como tem no Mundial, como tem agora no Campeonato Brasileiro. Acho que isso depende muito mais da gente se preparar bem e assim não vão ter motivos para comparar o feminino com o masculino", afirmou Andressa.

O futebol é um jogo só, independente se são homens ou mulheres em campo. Assim como dentro das quatro linhas queremos mais igualdade, fora delas nossa torcida também não precisa ter distinção.

IMPORTANTE: Para quem quiser acompanhar os próximos desafios da seleção brasileira feminina, entre os dias 26 de julho e 02 de agosto a equipe irá disputar o Torneio das Nações, que será realizado nos Estados Unidos. As adversárias do Brasil serão as americanas, as japonesas e as australianas.

(Foto: Fernanda Coimbra/CBF)

Na primeira rodada, no dia 26 de julho, o Brasil enfrentará a Austrália, no Children's Mercy Park, em Kansas City, às 17h15 de Brasília. O segundo confronto, dia 29, será contra o Japão no Pratt & Whitney Stadium, em East Hartford, às 17h15 de Brasília. As americanas serão as últimas adversárias do Brasil: dia 2 de agosto, às 21h30 de Brasília, no Toyota Park, em Bridgeview. A CBF ainda estuda como viabilizar a transmissão do Torneio.

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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