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Como Tite transformou 'geração ruim' em favorita ao título da Copa

Renata Mendonça

16/06/2018 04h08

Foto: Reuters

Não muito tempo atrás, os jogadores que entrarão em campo na estreia da seleção brasileira na Copa da Rússia foram chamados de "geração ruim". Neymar, Philippe Coutinho, Willian, Firmino e companhia eram parte de uma "safra inferior" do Brasil que não tinha mesmo como chegar a lugar algum.

Esses foram alguns dos comentários que se multiplicaram logo após o 7 a 1 para a Alemanha e os vexames acumulados sob o comando de Dunga após a Copa de 2014. Em junho de 2016, o Brasil já havia sido eliminado precocemente de duas Copa Américas – uma delas na primeira fase, derrotado para o Peru -, e figurava na sexta colocação das Eliminatórias da Copa do Mundo, correndo sério risco de, pela primeira vez na história, não disputar o Mundial.

Foi preciso uma mudança para que essa realidade se transformasse da água para o vinho. Considerado o melhor técnico brasileiro naquele momento (e já era o melhor em 2014), Tite foi convidado para assumir a seleção com a difícil missão de apagar aquele incêndio e, ao mesmo tempo, "consertar" a tal geração que todo mundo criticava.

Em pouco tempo, deu incrivelmente certo. E hoje, na véspera da estreia da seleção, o mundo inteiro fala do favoritismo do Brasil para a conquista do hexacampeonato. Até mesmo papos sobre um "quarteto mágico" novo surgiram por aí. Foram 21 jogos, 17 vitórias, só uma derrota – e incríveis cinco gols tomados. Uma campanha impressionante e uma transformação que beira o surreal. Afinal, o que fez Tite de tão diferente assim?

Decidimos falar com duas mulheres especialistas em futebol e tática para entender os segredos de Adenor nessa seleção que encanta: Ana Thaís Matos, repórter da Rádio Globo/CBN e comentárista do SporTV, e Emily Lima, ex-técnica da seleção feminina de futebol e atual comandante das Sereias da Vila.

Ana Thaís Matos é comentarista do SporTV (Foto: Reprodução)

O primeiro ponto destacado por elas foi um certo conservadorismo, que jogou em favor de Tite. "Ele é muito conservador e isso não é ruim. Desde que assumiu a seleção, ele sempre falou que a prioridade era explorar o que cada jogador faz de melhor em seus clubes e assim encaixar nos seus conceitos de futebol. Isso foi um passo muito importante, ele não quis inventar a roda, mesmo porque precisava de resultado imediato, já que a seleção estava mal nas Eliminatórias", observou Ana Thaís.

Esse foi um dos conceitos-chave que Tite implementou na seleção. Ele ligou para os técnicos dos clubes onde jogavam seus principais jogadores para entender como os atletas atuavam neles. Se Neymar jogava com liberdade pela esquerda no Barcelona (e depois no PSG), assim ele também jogaria no Brasil. Se Philippe Coutinho era o homem da armação no Liverpool, com movimentação no meio-campo, era desse jeito que ele ditaria o ritmo do jogo brasileiro. Willian pela direita, assim como atua no Chelsea. E assim sucessivamente.

A primeira mudança nítida que aconteceu com Tite no comando foi o rendimento de Neymar. Com Dunga, o maior craque da seleção brasileira simplesmente não conseguia jogar. Suas jogadas características cheias de drible e habilidade foram esquecidas, e ele acabava tendo que recuar muito para buscar a bola. Mas com o novo técnico, tudo mudou – e os últimos amistosos pré-Copa deixaram isso muito claro, com Neymar fazendo seus dois golaços e carimbando a cara dessa nova seleção que finalmente voltou a "jogar bonito".

Tite também teve grande mérito ao resgatar dois jogadores excluídos na era Dunga: o lateral-esquerdo Marcelo e o volante Paulinho.

"Ele foi buscar jogadores de sua confiança e apostou em nomes que só um profissional muito convicto de suas ideias poderia bancar como Paulinho, Marcelo e Renato Augusto. Com o coletivo organizado, o individual aparece, e aí Neymar teve espaço pra continuar sendo o principal jogador do Brasil", avaliou Ana Thaís.

 

Emily Lima ressalta poder de Tite na 'gestão de pessoas' (Foto: CBF)

 

Tem um outro aspecto de Tite que chama a atenção e é talvez o seu maior diferencial. O 'encantador de serpentes', como já foi chamado no passado, o treinador tem um talento admirável para engajar os jogadores na sua ideia de jogo. Seu potencial como "gestor de pessoas" é ainda mais importante nessa seleção do que todo o aspecto técnico que implementou, segundo Emily Lima.

"Falar de geração ruim é absurdo com esses jogadores. O Tite veio pra colocar tudo isso na lata do lixo. A geração é boa, basta saber trabalhar com ela. Ele soube captar a confiança dos meninos no trabalho dele. Essa parte gestor de pessoas é algo incrível que eu vejo no Tite, para além da parte tática. Acho que a gestão de pessoas é uns 60% do trabalho dele. Na parte técnica, nenhum jogador da Copa é melhor do que os nossos. Mas imagina como é lidar com pessoas que ganham milhões e milhões por mês, como é essa vaidade?", afirmou a treinadora.

O que não dá para negar ao assistir a essa seleção de Tite é que o Brasil finalmente encontrou um equilíbrio entre a genialidade de seu ataque e a solidez de sua defesa. Na Copa de 1970, o tricampeonato da seleção na Copa, o país ficou conhecido por seu "jogo bonito", sua forma ofensiva de se postar em campo, tirando para dançar qualquer sistema de defesa que aparecesse pela frente. Mas com o tempo, o futebol evoluiu, e o Brasil abriu mão de suas características para imitar o estilo europeu, mais baseado na força física.

 

Só que, ao menos ao que parece, Tite conseguiu resgatar um pouco daquele estilo, sem perder na aplicação tática da defesa. A ideia que ele cultiva de futebol parte do pressuposto que todos os jogadores precisam participar de todos os momentos do jogo.

"No momento ofensivo, tem que ser criativo, deixar os meninos fazerem o que eles gostam, que é deles. Você não pode engessar os brasileiros, como estava sendo feito. O Tite deixa claro que, na fase ofensiva, a gente vai ser ofensivo, mas na defensiva vai ser defensivo", explica Emily.

Foto: Mowa Press

"Vi uma palestra dele em que perguntaram por que ele defende com todos os jogadores? Ele foi muito claro na resposta: um escanteio, por exemplo, é a fase defensiva do jogo, então todo mundo tem que defender. E ele mostrou como um lance que era defensivo do Brasil, virou lance ofensivo na recuperada de bola. Então é preciso estudar, entender a evolução do futebol, mas não deixar as raízes do futebol brasileiro se perderem. A gente estava deixando o ofensivo e focando só o defensivo. Ele conseguiu ter esse equilíbrio dos dois momentos."

Equilíbrio, obediência tática, psicológico controlado, e à parte disso, as genialidades que só Neymar consegue oferecer: parece que tudo encaixou na hora certa para Tite. As vitórias nos amistosos contra Croácia e Áustria mostrando o melhor do futebol dessa seleção deixaram uma sensação de que o time "está pronto" – e que algo grande pode vir por aí

"Nunca a seleção esteve tão bem dentro e fora de campo, os jogadores compraram a ideia de Tite e estão brigando em campo por ele. Com tudo assim, fica difícil dar errado. Só algo muito surreal nos tiraria da final", opina Emily Lima.

Independentemente do resultado, parece certo que ao menos outro vexame não virá por aí. E o mérito é todo do Tite.

"A geração era considerada ruim porque a seleção brasileira é o espelho máximo do que de melhor temos entre os jogadores brasileiros e essas peças eram mal treinadas e pressionadas por nós, que ignorávamos o tanto que o trabalho dentro de campo era fundamental pra explorar o potencial de cada um. Fato que Tite soube muito bem colocar em campo e espantar de vez a desconfiança dessa geração que é, na verdade, ótima", concluiu Ana Thaís.

 

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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