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‘Relação torcedor-seleção hoje é cínica e protocolar’, diz Milly Lacombe

Renata Mendonça

11/06/2018 07h45

Foto: EBC

Milly Lacombe foi uma das mulheres pioneiras no Jornalismo Esportivo na televisão. Em um meio esmagadoramente masculino, ela virou comentarista de jogos no PFC (pay per view) e passou a integrar as cadeiras do Arena SporTV, um programa bem prestigiado no meio.

Lá, ela analisava jogadas, jogadores e o jogo em si ao lado de renomados jornalistas homens, como Armando Nogueira e Claudio Carsughi. Conquistou um espaço que até hoje é difícil ver mulheres ocupando no futebol: o da opinião. Chegou a ser comentarista de jogos da Champions League em plena TV aberta, quando a Record tinha os direitos da competição. Mas um "erro gravíssimo", como ela mesma descreve, mudou um pouco a trajetória de sua carreira. O episódio envolvendo o goleiro Rogério Ceni do São Paulo aconteceu em 2006 e aqui ela fala à dibradoras sobre as lições que tirou daquela situação.

Hoje, em sua rotina de trabalho, Milly Lacombe se afastou um pouco do futebol, mas na vida pessoal ela segue com a mesma paixão que viu despertar ainda aos 2 anos de idade por influência do pai. Em nova entrevista às dibradoras, a jornalista deu seus palpites sobre a Copa do Mundo que está para começar e falou sobre sua relação com o futebol e com o Mundial desde a infância.

"Em 1998, eu entendi que a euforia que eu sentia antes com a seleção na Copa não ia mais voltar. Isso estava relacionado a eu ver um futebol como arte. A seleção representa uma nação, a cultura de um povo, é algo mais coletivo. A cultura tem que impactar o futebol, e não o contrario. Como brasileiro, acho que a gente tem que ter ginga, criatividade, molejo, e a gente não tem mais isso", afirmou.

Episódio polêmico de Milly com Rogério Ceni aconteceu em 2006

"Hoje a relação do torcedor com a seleção brasileira é protocolar. Param para ver os jogos porque é uma maneira de se encontrar, celebrar, fazer uma festa. Mas acho, quando a seleção perde, as pessoas não ficam mais tristes, não se abalam tanto".

Leia os principais trechos da entrevista com Milly Lacombe:

~dibradoras: Qual é a sua primeira lembrança de Copa do Mundo?

Milly Lacombe: É em 1970. Eu tinha dois anos só, mas tenho alguns flashes. Eu no colo do meu pai, minha mãe fazendo uma bandeira na máquina de costura às pressas, meu pai falando que a gente tinha que descer para a rua comemorar. Tinha muita gente na rua. Lembro aquele jogo, Brasil x Itália, aquele último gol do Carlos Alberto Torres, aquele gol tem uma elegância, uma displicência de toques, aquela bola que vai raspando. Esse gol é uma suspensão estética.

~dibradoras: E qual Copa foi mais marcante para você?
Milly: Minhas maiores memorias são da Copa de 1982 e 1986. Eu já era adolescente e foram memórias doloridas. Em 1982, eu tive uma dor que nunca mais esqueci, quando acabou eu tive sensação de morte.

Aquela derrota (para a Itália por 3 a 2) fez um mal enorme pra gente. A partir daquele momento, a gente associou futebol bonito à derrota, e desde então a gente vem lutando contra o futebol bonito. A gente lida com isso como se fossem as últimas alternativas: jogar bonito e perder, jogar feio e ganhar. Mas aí em 2014 a gente aprendeu que existe também jogar feio e perder horrorosamente (no 7 a 1).

~dibradoras: O que mais te marcou dessa Copa de 1982?
Milly: A eliminação. Eu estava na casa da família da minha amiga no Guarujá. Ninguém conseguia nem se falar quando o jogo acabou. Era uma sensação de desespero. A gente jogou muita bola, não dava para entender aquela derrota.

Em 1986, eu achava que a gente ia ganhar. Achava que a vida tinha um roteiro bem bonitinho, acontecia algo ruim para depois acontecer uma coisa boa. Mas naquela Copa aprendi que as coisas acontecem no tempo delas. Hoje eu olho para aquilo com muita poesia. Na época foi uma sensação de: a vida é realmente dura. Acabou o futebol pra mim, chega. Não vou mais submeter a isso. Lógico que dias depois eu já tinha mudado de ideia.

 

~dibradoras: E o tetra em 1994?
Milly: Eu estava com a mesma família com quem eu estava em 1982. Mas quando ganhou, eu lembro que pensei: poxa, ganhamos, eu não deveria estar mais feliz do que eu estou? Lembro que, quando o jogo acabou, eu estava com vontade de comer um sorvete, não de ir para a Av. Paulista comemorar. Eu me cobrei uma euforia que não vinha. E aí em 1998 eu entendi que essa euforia não iria voltar.

Isso estava relacionado a eu ver um futebol como arte. Eu preferia a derrota jogando bonito, do que a vitória jogando feio. Isso na seleção, não no clube. Mas porque a seleção representa mais, representa a nação, é a nossa cultura, é algo mais coletivo. A cultura de um país tem que impactar o futebol, e não o contrário. A gente tem que ter ginga, criatividade, molejo. A gente não tem mais nada disso. Essa seleção do Tite é intensa. Tem um time bom, disputa todas as bolas e isso tem uma beleza, mas eu gostaria de muito mais.

~dibradoras: Como você viu o 7 a 1 e a reconstrução da seleção brasileira para essa Copa?

Milly: Aquela semi contra a Alemanha, eu previ que seria uma goleada. Confesso que até fiquei brava quando a Alemanha fez o quinto porque eu tinha previsto 4 a 1. Teve um certo prazer de ter acertado o que ia acontecer e teve felicidade de dizer: está vendo CBF, vocês se ferraram, tratem de começar do zero.

Mas aí veio o Dunga. É aquele caso clássico da portinha que a gente encontra no fundo do poço. Aí a minha relação com a seleção já era uma coisa muito cínica. Pensei: vamos precisar cair mais para começar de novo. Demorou mais do que previsto pra esse recomeço. Hoje minha relação com essa seleção não é mais esse cinismo, eu até fico emocionada de ver o time do Tite jogando de maneira intensa, entregue. Mas não vibro mais como antes, hoje é uma relação quase protocolar.

~dibradoras: E como você vê a relação do torcedor brasileiro com a seleção hoje?

Milly: Eu acho que mudou demais da minha infância e adolescência para o que a gente tem hoje. Antes a gente comemorava os jogadores do meu time convocados. Hoje eu fico p*** porque o jogador convocado vai desfalcar meu time. Nao é só que você não faz questão, você fica puto que o time vai jogar sem ele e tal. A gente não consegue mais separar a seleção de todo esse rebuceteio político brasileiro. Acho que saudavelmente a gente mistura as duas coisas. É muito difícil falar de corrupção e tirar a CBF disso. Acho que a seleção ta sofrendo reflexo dessa politiquice. O torcedor ficou mais cínico com relação a ela. A relação com clube é mais pessoal. Mas com a seleção é um sentimento de nação, e nosso sentimento de nação mudou.

A coisa de pintar a rua mudou também porque mudou também a relação com a cidade. Você não vê a cidade como sua. Vou pintar a rua com o país derretendo? Por enquanto, existe uma consciência coletiva nesse sentido também.

Acho que hoje há uma relação quase que protocolar, elas só querem que ganhe, independente de jogar bem ou não, ganhar, a qualquer custo. As pessoas param pra ver os jogos porque é uma maneira de se encontrar, celebrar, fazer uma festa. Mas acho que, quando perde, as pessoas não ficam mais tão tristes, não se abalam tanto. O futebol da seleção perdeu um pouco a importância, acho.

~dibradoras: Tem muita gente que diz que a Copa é um momento para alienação política. O que você acha isso?

Milly: Eu acho que a gente está mergulhado em convites pra se alienar, em todas as instâncias e por todos os lados. Tem o consumo, o entretenimento vazio, a gente é convidado a se alienar a todo instante. A Copa e os esportes em geral podem ser encarados assim, mas não acho que necessariamente seja assim, porque a partir do momento que você adquire consciência política, você consegue separar as coisas.

~dibradoras: Quais são suas previsões para essa Copa? Como será o desempenho do Brasil na sua visão?

Milly: Brasil acho que vai jogar intensamente, vai chegar longe, mas não vai chegar no fim. Acho que uma seleção da qual a gente espera pouco vai surpreender, a Argentina. Eles vêm jogando mal, mas acho que vão surpreender. Fora isso, a Alemanha deve ir longe também.

Foto: Arquivo Pessoal

Acho que com a Argentina, a gente tem essa relação de inimizade, de ódio e de deboche. E soa arrogante. A gente ficou muito tempo nesse complexo de vira-lata, mas depois passou para o complexo de pitbull.

Como se fosse uma imoralidade a gente gostar do futebol deles (da Argentina). A gente tem mais coisas para se identificar com a Argentina do que pra não se identificar. Eles não abriram mão da cultura deles no futebol. Jogam como se dançassem tango, é um jogo dramático, eles torcendo, gritando, eles não se preocupam em demonstrar tristeza quando estão mal, quando perdem.

~dibradoras: Você falou da falta que sente do jogo bonito. Tem alguma seleção que jogue bonito na sua visão hoje?

Milly: Acho que a Espanha e a Alemanha. E são coisas diferentes. A Espanha tem uma coisa mais latina, no sentido de sangue, de ginga, acho que muito por causa do Barcelona, essa maneira de jogar quase que uma laranja mecânica atualizada, é bonito de ver. A Alemanha fez um caminho contrário ao nosso. Diziam que o futebol brasileiro era poesia e o europeu era prosa. Eu acho que o brasileiro abriu mão dessa poesia para imitar a prosa deles. Acho que os alemães abriram mão da prosa para ter resquícios dessa poesia. E vejo isso no jogo deles, é um 'jogo bonito fabricado', mas é bonito.

~dibradoras: Você foi comentarista de futebol na TV há 10 anos. Hoje, ainda é raro ver mulheres comentando, narrando. Como vê essa evolução?

Milly: Acho que tem muita coisa pra evoluir. Está muito lento ainda. Não tem representatividade no esporte na TV, não tem muitos homossexuais, nem negros, nem mulheres. Quando tem episódio de racismo no futebol, são homens brancos comentando e aí não cola esse discurso, fica desconectado da realidade. Sem esse lugar de fala falando em nosso nome.Tem que mudar muita coisa aí.

~dibradoras: Lançamos uma campanha sobre "Chamar a Menina pro Jogo" nessa Copa. Como você foi chamada para o jogo na sua casa?

Milly: Eu com 2 anos estava vendo jogos da seleção do Fluminense no colo do meu pai. Era só um programa que eu fazia com meu pai. Só que ele estava me infectando com esse vírus e esse vírus é pra vida. Depois que você faz 20, 30 anos, é difícil você falar: vou trabalhar com futebol, deixa eu ler aqui. Futebol tem que crescer com você. Eu não decorava os nomes dos atacantes do Fluminense, não é como decorar uma coisa de História. É um amálgama na sua essência. Se você chama a criança, homem ou mulher, e mostra: isso aqui é futebol, a criança vai querer se conectar. É uma forma de se conectar às primeiras pessoas que você ama na vida, pode ser pai, mãe, irmã. Aí ele cresce com você e tem que chamar mesmo todo mundo, porque é lindo.

 

 

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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