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Em curso sobre Copa, confederação argentina ensina 'como seduzir russas'

Renata Mendonça

15/05/2018 19h19

Foto: Nacho Castullo (Reprodução Twitter)

A um mês da Copa do Mundo da Rússia, a Associação De Futebol da Argentina (AFA, a CBF dos hermanos) decidiu oferecer um curso de "idioma e cultura russa" destinado para jornalistas, técnicos, dirigentes e até jogadores que irão se aventurar no país europeu durante o Mundial. Assim como no Brasil, por lá há pouca gente que fala inglês, então uma introdução a alguns ensinamentos básicos sobre a língua e os costumes russos seriam muito úteis para qualquer um que vai pisar lá pela primeira vez.

Só que na apostila do curso promovido pela AFA, havia um capítulo um tanto quanto inesperado. Intitulado "O que fazer para ter uma chance com uma mulher russa", a apostila elenca algumas dicas "básicas" sobre, por exemplo, como se aproximar de uma russa para uma possível "investida".

O item 1 diz "as mulheres russas, como quaisquer outras, prestam muita atenção na sua aparência, se está cheiroso e bem vestido. A primeira impressão é importante para elas, por isso, atenção à sua imagem!". Aí vem o 2, bastante contraditório para estar num manual que basicamente ensina estrangeiros sobre como "pegar mulher" na Rússia.

"As mulheres russas não gostam de ser vistas como objetos" – jura? "Muitos homens, porque as mulheres russas são muito bonitas, somente querem levá-las para a cama. Talvez elas também queiram só isso, mas são pessoas que querem se sentir importantes e únicas. O conselho é tratar a mulher na sua frente como alguém de valor, com suas próprias ideias e desejos" – gente, mas esse não seria o conselho primordial para tratar qualquer ser humano na face da Terra?

Foto: Reprodução AFA

Aí vem o item 8 com essa pérola. "Normalmente as mulheres russas prestam atenção a coisas importantes, mas é claro que você encontrará garotas que só prestam atenção a coisas materiais, dinheiro, se você é bonito, etc. Não se preocupe, existem muitas mulheres bonitas na Rússia e nem todas são boas para você. Seja seletivo".

O manual repete alguns vários clichês que conhecemos por aí que curiosamente ensinam a "não tratar a mulher como objeto" quando isso é exatamente o que o manual faz – afinal, são objetos, eletrodomésticos e afins que precisam de "manual" para serem manejados. Mas mais importante do que os supostos "ensinamentos" que ele traz é quem está por trás dessa "aula". É real, chegamos em 2018 e uma confederação de um dos países mais tradicionais no futebol está oferecendo um curso que inclui um conteúdo sobre "como pegar mulheres no país da Copa".

Foto: Nacho Catullo (Reprodução Twitter)

O fato ganhou grande repercussão após ter sido divulgado nas redes sociais – nós ficamos sabendo pelo Twitter do jornalista argentino Nacho Catullo -, e a apostila chegou a ser recolhida durante o curso nesta terça-feira pela própria confederação.

 

É tão bizarro mas, ao mesmo tempo, tão simbólico que tenhamos chegado a esse ponto na Copa do Mundo da Rússia, um país de cultura machista institucionalizada.

Um país que chegou a ter uma lei "anti-gay" proibindo que crianças tenham acesso a qualquer informação sobre homossexualidade; e que aprovou recentemente outra polêmica legislação sobre violência doméstica – segundo essa nova lei, arranhões, ferimentos superficiais e agressões que causam dor física, mas não deixam hematomas na vítima, não serão considerados crime. Além disso, por lá, se o agressor não repetir a agressão no prazo de um ano, ele também não será penalizado.  (Dados de autoridades russas mostram que mais de 600 mulheres são mortas em suas casas a cada mês no país).

E mais simbólico ainda que a proposta desse "manual" venha de uma confederação argentina, que tem demonstrado cada vez mais sua indiferença com as mulheres no futebol. A seleção feminina do país chegou a ficar mais de um ano sem treinar e competir por falta de investimento da AFA e não recebeu os devidos pagamentos de custos de viagem para disputar a Copa América no Chile neste ano. Elas inclusive fizeram um protesto na foto oficial do torneio reclamando a falta de apoio por parte da confederação.

 

Diante de todo esse cenário, é revoltante, mas talvez não tão surpreendente perceber que criaram um curso de cultura russa para ensinar os argentinos a " pegar mulheres" no país da Copa. Mas não dá mais para isso passar despercebido ou ser encarado como "piada". Muito menos dá para vir pedir perdão "àqueles que se sentiram ofendidos", como virou moda por aí.

A AFA deve desculpas às mulheres argentinas, que são tão torcedoras, tão jornalistas esportivas, tão jogadoras, e tão apaixonadas por futebol quanto os homens e merecem respeito. Deve desculpas também às mulheres russas, que foram tratadas com extremo desrespeito nesse contexto.

E deve também explicação sobre por que achou apropriado oferecer esse tipo de conteúdo em um curso que tinha como objetivo ensinar o idioma e a cultura do país da Copa. Por que não, em vez de falar sobre "sedução de mulheres", incluir na apostila detalhes sobre as leis homofóbicas e machistas em vigor no país e os cuidados que as mulheres e as pessoas LGBTs que estão viajando para lá precisam tomar por conta disso?

Afinal de contas, não deve haver apenas homens heterossexuais entre os jornalistas, torcedores e dirigentes argentinos que vão desembarcar em Moscou para o Mundial – e as informações sobre machismo, violência doméstica e ataques às pessoas LGBTs podem ser bem úteis para ambos os gêneros. E mais: se o curso só está trabalhando com o público heterossexual, convenhamos que ele está sendo bastante excludente.

O manual que a AFA está precisando urgentemente é o do respeito.

 

Sobre as autoras

Angélica Souza é publicitária, de bem com a vida e tem um senso de humor que, na maioria das vezes, faz as pessoas rirem. Alucinada por futebol - daquelas que não pode ver uma bola que já sai chutando - sabe da importância e responsabilidade de ser uma mulher com essa paixão. Nas costas, gosta da 10, e no peito, o coração é verde e branco e bate lá na Turiassú. Renata Mendonça é apaixonada por esporte desde que se conhece por gente. Foi em um ~dibre desses da vida que conseguiu unir trabalho e paixão sendo jornalista esportiva. Hoje, sua luta é para que mais mulheres consigam ocupar esse espaço. Roberta Nina é aquariana por essência, são-paulina por escolha e jornalista de formação. Tem por vocação dar voz às mulheres no esporte.

Sobre o blog

Futebol não é coisa de mulher. Rugby? Vocês não têm força para jogar... Lugar de mulher é na cozinha, não no campo, na quadra, na arquibancada. Já ouviu isso muitas vezes, né?! Mas o ~dibradoras surgiu para provar justamente o contrário. Mulher pode gostar, entender e praticar o esporte que quiser. E quem achar que não, a gente ~dibra ;)

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